Uma análise de toda a obra do cineasta americano, desde o primeiro longa “O Que Há, Tigresa?”, de 1966, até “Café Society”, de 2016
Minha cinefilia precoce deve muito aos filmes de Woody Allen. Ficava de madrugada acordado, esperando a Globo reprisar “A Última Noite de Boris Gruschenko” ou “O Dorminhoco”. Sou velho o suficiente para lembrar que “A Rosa Púrpura do Cairo” ficou mais de um ano em cartaz no Rio, entre 1985 e 1986. Ou que “Tudo o que Você Queria Saber Sobre Sexo”, um filme de 1972, só foi estrear na TV brasileira no fim dos anos 1980. Lembro-me de ter encarado uma sessão à meia-noite de “Zelig”, sem legendas, nalgum momento do comecinho da década de 1990. Depois de ter enriquecido minha cultura woodyística com livros (dele ou sobre ele), peças de teatro, entrevistas e documentários, percebi que, na verdade, a obra de Allen não apenas moldou meu gosto cinematográfico. Devo a ele também muito de meu senso de humor — e mesmo a maneira como enxergo a vida foi influenciada por seus pensamentos. Eu acompanhava até a tirinha em quadrinhos “estrelada” por ele, que o “Globo” publicava nos anos 1980!
Poucos cineastas encarnaram a teoria do “auteur” cinematográfico quanto Allen. Especialmente depois que o ator-roteirista-diretor percebeu que poderia usar o cinema para algo além de contar piadas (muito) engraçadas. Alguns o criticam por “fazer sempre o mesmo filme”. Eu vejo aí coerência autoral. Woody tem um repertório de temas que o interessam como artista e como ser humano, e usa seus filmes para trabalhar e retrabalhar esses temas. O estudo de sua obra por completo revela a constância dessas obsessões e a evolução da abordagem que Allen vem dando a elas.
A seguinte filmografia comentada restringe-se aos longas dirigidos por Allen. Não inclui, por exemplo, o curta-metragem que ele assina em “Contos de Nova York”. Nem os filmes nos quais ele participa apenas como ator e/ou roteirista (“O que Há, Gatinha?”, “Sonhos de um Sedutor”, “Testa de Ferro por Acaso”…). Também restringi os textos a comentários sobre técnica, estilo e temática — não há sinopse nem ficha técnica de cada filme, ou grandes elaborações sobre a trama. Parto do princípio que os leitores estão ao menos familiarizados com os longas. Atenção para os eventuais spoilers. Se você não assistiu ao filme comentado, recomendo pular a leitura para o longa seguinte.
Confesso que não sabia qual era o título traduzido do primeiro filme “dirigido” por Allen. Assisti-o em uma mostra no CCBB, em 1990, sem legendas. Como em todos os longas da fase inicial do diretor, a prioridade era manter um ritmo acelerado de piadas farsescas. Aqui, o estilo era levado às últimas consequências. Allen pegou dois filmes japoneses de espionagem, reeditou-os e botou uma dublagem por cima, transformando a trama numa história sem pé nem cabeça (em vez de um microfilme ultrassecreto os espiões brigam por uma receita de salada de ovos). A ideia sequer foi do cineasta. O estúdio AIP comprou os longas orientais com a intenção de lança-los nos EUA, mas achou a história confusa demais; um executivo então sugeriu entregar tudo a Allen, que estava na crista da onda como roteirista e comediante. Menos um longa-metragem do que um experimento em nonsense, ainda tem a participação da banda riponga Lovin’ Spoonful, em cenas enxertadas sem a autorização do diretor (para esticar a duração do filme). Hoje é uma mera relíquia, um passatempo para completistas — e nem tão engraçado assim, se não me falha a memória depois quase 20 anos.
Melhor momento: Os créditos finais, durante os quais a modelo China Lee faz um (casto) striptease enquanto os letreiros sacaneiam o espectador.
Cotação: 5
Eis, afinal, a estreia de fato de Allen como diretor. Na mesma tacada, ele estabelece sua persona cinematográfica inicial — tímido, atrapalhado, autodepreciativo, caricatural e intrinsecamente judaico — e um modus operandi estilístico que seguiria, com variações, até 1977. Há pouco roteiro per se. Em vez de uma história coerente, temos uma metralhadora de esquetes com níveis variados de comicidade (minha piada favorita: “Os prisioneiros tinham direito a uma refeição quente por dia: um prato de vapor”.) A fórmula de metadocumentário seria retomada, com muito mais brilhantismo, em “Zelig”.
Melhor momento: Woody aprisionado numa “chain gang”, marretando dormentes numa linha férrea, e cantando um spiritual (que, na versão dublada, ficou “Eu vou ver a Dona Lyla. Vou pro Mississipi”).
Cotação: 6
Inspirado no (bom) livro “Dom Quixote Americano”, de Richard Powell, é o mais político dos filmes de Allen, junto ao mais metafórico “Neblinas e Sombras”. Claro que o confuso cenário “revolucionário” na América Central só serve como pano de fundo para o humor anárquico. Em termos de ritmo e de piadas, é um retrocesso em comparação com “Um Assaltante”. Allen perde um pouco a mão na segunda metade (quando seu personagem retorna aos EUA). Irregular, mas exemplo importante de uma fase menos “cabeça” e despretensiosa do cineasta.
Melhor momento: Não perca um ainda anônimo Sylvester Stallone assaltando Woody no metrô de Nova York, logo no começo do filme.
Cotação: 6
Woody voltava a basear-se mais uma vez num livro (o clássico homônimo, e seriíssimo, de David Reuben). Para Allen, um obcecado com o sexo e suas questões correlatas, o revolucionário livro de Reuben era um prato transbordando. “TOQVSQSSS (MTMDP)” é um filme mais ambicioso que seus predecessores. O diretor usou sete dos tópicos abordados no livro (afrodisíacos, sodomia, dificuldades do orgasmo feminino, travestismo, perversão, pesquisas sexuais e ejaculação) para criar um longa em episódios. Contou com um elenco recheado de talentos cômicos (Tony Randall, Lou Jacobi, Gene Wilder) e exibiu notável tino para brincadeiras estilísticas. Exemplos são o episódio sobre o orgasmo feminino, parodiando o cinema italiano dos anos 60 (com direito a diálogos em italiano) e o game show retrô feito para ilustrar o capítulo sobre perversão. E chega a esbarrar no surrealismo no episódio sobre as pesquisas — que culmina com um seio gigante fora de controle, correndo pelos campos — e no epílogo, no qual o próprio Woody interpreta um espermatozoide. O resultado, até mesmo pelo formato, é o mais divertido e “satisfatório” (cinematograficamente falando) dos filmes da fase inicial de Allen.
Melhor momento: São vários. Meu favorito é o Lou Jacobi, vestido de mulher, falando fino e tentando esconder o bigodão com uma echarpe.
Cotação: 8
Continuando a inspiração surreal que marcou o longa anterior, aqui Allen se aventura pela ficção científica. Apropriando-se de/referenciando-se em Kubrick, George Orwell e H.G.Wells, é uma sátira distópica. Mas, como em “Bananas”, o subtexto é mera formalidade. O roteiro volta a apoiar-se na persona fílmica de Woody para extrair a maior parte de sua graça. Visualmente, é mais refinado e impactante, usando sets elaborados e efeitos especiais (como na cena em que Woody flutua usando uma roupa inflável). Só que ainda é claramente a obra de um cineasta procurando sua própria voz, e ainda usando gêneros e trabalhos alheios como base para o humor. Curiosidade extraída do IMDb: a ideia original era rodar o longa em Brasília, aproveitando o visual futurista da capital.
Melhor momento: Woody passando-se por robô, numa cena que junta sci-fi e puro pastelão.
Cotação: 6
Bergman, Chaplin, Dostoiévski e Tolstói irmanam-se nesse sexto filme, que pode ser considerado o “Rubber Soul” de Allen — o primeiro salto que possibilitou voos maiores. O método de paródias e/ou referências a obras alheias persiste. Mas aqui Woody já aborda assuntos que seriam martelados ao longo de sua carreira — a angústia diante da morte, o sentido da vida, a infidelidade. Talvez rebatendo os críticos que ainda o viam como um mero piadista, exibe uma intenção explicitamente mais intelectualizada, enchendo o roteiro de referências à literatura russa e a filmes de Ingmar Bergman (em especial “O Sétimo Selo”). Só isso tudo ainda vem embaralhado com passagens de nonsense radical e discussões pseudofilosóficas — que, no entanto, refletiam temas bastante importantes para o diretor, como se veria mais tarde. Como diretor de atores e roteirista, Allen mostra evolução, aplicando nuances aos personagens (em especial ao de Diane Keaton, mas também ao seu protagonista, apesar do tom caricatural).
Melhor momento: O duelo na floresta coberta de neve.
Cotação: 8
Ou: “Ah, Esses Tradutores Criativos!”, ou, voltando à analogia beatlesca, o “Revolver” de Woody. Nos dois anos que separaram “Annie Hall” de “Boris Gruschenko”, Allen deu um salto quântico como ator, roteirista e diretor. Quase todos os traços autorais de seu futuro estavam contidos aqui: personagens neuroticamente absorvidos em si mesmos, relacionamentos fadados ao fracasso, comentários sardônicos sobre a fama e o showbiz, a protagonista feminina levemente louquinha, a busca da expressão criativa como forma de suplantar a mundanidade do cotidiano, uma visão cínica e pessimista (mas ao mesmo tempo melancólica) sobre o amor em particular e a existência humana em geral. Nova York também assumia um papel fundamental, não apenas como cenário da ação, mas como um “estado de espírito” que influencia diretamente as personalidades dos protagonistas. NY era “o mundo” — o retrato patético que Woody faz da Califórnia pós-flower power é a prova. Os planos são mais longos, o roteiro contempla diálogos e situações que evoluem de forma natural, e não apenas amarram piadas. Conscientemente, Allen abandonou a zoeira dos longas anteriores em busca de um tom mais naturalista e maior profundidade psicológica. Mesmo que, aqui e ali, escape do realismo (como na sequência com Marshall McLuhan na fila do cinema). Sucesso de crítica e público, “Noiva Nervosa, Noivo Neurótico” é também seu filme mais influente. É a quintessência da comédia romântica de Allen — que não apenas evita os clichês do gênero, mas também cristaliza sua (anti)heroína por excelência, Diane Keaton. Ganhou uma penca de Oscars (batendo “Star Wars”, haha) e hoje é provavelmente o filme mais querido dos fãs “casuais” do diretor.
Melhor momento: O monólogo inicial, no qual Allen dirige-se direto ao público e não apenas apresenta as questões fundamentais do filme, mas redefine sua persona cinematográfica.
Cotação: 9
Outro marco fundamental. Além de ser seu primeiro drama, é também o primeiro filme no qual ele dirige, mas não atua. Disposto a mostrar que tinha mais a oferecer do que apenas piadas amalucadas, Allen seguiu com um longa austero e 100% desprovido de humor. É possível, como vários críticos sugeriram à época, enxergar o filme como uma emulação/homenagem ao estilo de Ingmar Bergman — e sua maneira seca, econômica em palavras, de analisar as dificuldades nos relacionamentos humanos. Na figura da matriarca vivida por Geraldine Page há traços emblemáticos dos personagens femininos de Allen: instabilidade mental contrabalançada por charme e inclinações artísticas, características que reapareceriam em outros roteiros. Não é, nem de longe, seu melhor drama. Alguns diálogos soam muito artificiais e há um tom pretensioso, afetado, que permeia situações e os personagens. Mas para uma primeira incursão, dá para o gasto. A fotografia é bela (de Gordon Willis) e as performances são boas (em especial as de Page e Maureen Stapleton).
Melhor momento: O showdown entre E.G.Marshall e Geraldine Page, na igreja.
Cotação: 6
Apesar da precedência histórica de “Annie Hall”, este é para mim o filme que sumariza o melhor de Allen. O humor é afiado, mas temperado com melancolia ímpar; os relacionamentos amorosos e os personagens são perfeitamente críveis; há a nítida procura por sofisticação (visual e de conteúdo), mas que nunca esbarra na afetação. Carta de amor declarada a Nova York, é também a análise definitiva sobre a impossibilidade de satisfação plena no amor. Tracy ama Isaac que ama Mary que ama Yale, que é casado e abandona Mary, abrindo caminho para que Isaac fique com Mary, que continua pensando em Yale, que neste meio tempo já deixou a esposa para ficar com Mary, e só aí Isaac descobre que deveria ter ficado com Tracy desde o começo, mas agora é tarde demais… ou não? Prova da maturidade de Allen como roteirista é o modo como discussões filosóficas e citações intelectualoides se misturam, sem costuras aparentes, às piadas — e todos ficamos com a impressão de que sim, era daquele jeito mesmo que os nova-iorquinos antenados falavam no fim da década de 1970. A sedução se completa com a fotografia de Gordon Willis (é o primeiro de vários filmes P&B que o diretor faria) e a igualmente bela trilha sonora (com arranjos orquestrais para as mais famosas canções de George Gershwin).
Melhor momento: O epílogo, obra-prima de diálogo agridoce que se encerra com a frase: “Você tem que ter mais fé nas pessoas” e um tímido sorriso de Allen.
Cotação: 10
Reza o clichê que este é o “8 ½” de Allen, seu filme mais “confessional”, “onírico” e “surreal”. (Relativamente) pouco visto, é decerto um de seus trabalhos mais interessantes. É pretensioso também, mas o approach irônico que Woody aplica à sua obra e à sua persona fílmica contrabalançam a pretensão. Woody sempre negou que o roteiro e o protagonista sejam autobiográficos. Foi acusado (não sem razão) de egomania e narcisismo. Mas as semelhanças são tantas que a narrativa beira a autoparódia. O retrato que o cineasta pinta de si mesmo é contraditório e perceptivo. Assediado pelos fãs e pela crítica, é assaltado por cobranças para que ele retorne aos “antigos filmes, mais engraçados”. Os dias de rejeição crônica ficaram para trás; agora Sandy (Woody) brinca de cirandinha com três belas mulheres (Charlotte Rampling, Marie-Christine Barrault e Jessica Harper). O diretor lança mão do sobrenatural como recurso narrativo. Não que fosse uma novidade — lembram-se dos passeios de mãos dadas com a morte, em “Boris Grushenko”? Mas, dentro da segunda fase iniciada com “Annie Hall”, mais realística e menos zoada, era a primeira vez. Formalmente, é sofisticado. Outra vez fotografado em P&B, tem sequências lindamente filmadas (como a cena com os balões, ao som de “Moonlight Serenade”). “Memórias” foi mal recebido pela crítica e fracassou na bilheteria. Natural. Os críticos não devem ter gostado da imagem obtusa que Allen faz deles na tela; seu público é tratado como um bando de chatos, que não aceitam a mudança em seu estilo e o perturbam constantemente com pedidos de autógrafos. Autoanálise de um artista em pleno processo de maturação/transição, tentando lidar com os conflitos que pipocavam durante o período.
Melhor momento: A retrospectiva dos filmes de Sandy Bates (o personagem de Allen).
Cotação: 9
Em quatro anos, Allen cristalizou seu estilo autoral, aventurou-se no drama e fez uma (suposta?) autocrítica. Parou para tomar fôlego com esta comédia ligeira, que apesar de não ser um de seus filmes mais populares, tem lugar importante em sua obra. É o primeiro (de 13) longas que rodou com Mia Farrow, que viria a ser sua mulher. Também marca sua primeira experiência como diretor de um elenco em formato “ensemble”, sem um protagonista claramente definido — opção à qual ele voltaria varias vezes. Divertido, o roteiro embala de forma leve e agradável as fixações de Woody com a infidelidade e o flerte compulsivo. Baseado bem livremente em “Sorrisos em Uma Noite de Verão”, de Bergman, exibe mais uma vez uma fotografia belíssima, de inspiração impressionista. Outro ponto para Gordon Willis, que usou um estilo completamente diferente do visto nos filmes P&B anteriores.
Melhor momento: Woody dando em cima de Mia, sem a menor competência, claro.
Cotação: 6
Treze anos depois de “Um Assaltante bem Trapalhão”, Woody arrisca mais um falso documentário. Saiu-se com um dos mais ousados e justificadamente cultuados filmes de sua carreira. Antecipando o conceito básico de “Forrest Gump” (sem o sentimentalismo, claro), “Zelig” é uma proeza tanto de conceituação quanto de realização cinematográfica. A ideia do camaleão-humano como metáfora do judeu que busca a assimilação dentro de culturas alheias é brilhante — e serve também, em última instância, de espelho para a própria história de Hollywood. Afinal, a máquina de sonhos (e de divulgação do american way of life) que é o cinema ianque foi criada por judeus vindos da Europa… Coube de tudo no filme: crônica social e histórica, psicanálise, crítica à máquina de entretenimento e à cultura das celebridades. A fixação nostálgica do diretor com o modo de vida da primeira metade do século 20 emerge forte. Ah, e coube comédia de altíssimo nível também. Na fotografia, Allen e (de novo) Gordon Willis inseriram de modo perfeito o protagonista em cenas históricas, e criaram todo um universo absolutamente crível em torno da figura de Leonard Zelig. A elaboração dos efeitos especiais levou mais de um ano. Prova cabal da imaginação, da inteligência e da capacidade técnica de Woody como cineasta.
Melhor momento: Os depoimentos fake que pessoas seríssimas, como Saul Below, prestam discorrendo sobre o “fenômeno” Zelig.
Cotação: 9
“Filminho” agridoce e muito engraçado sobre o showbiz, ou mais especificamente sobre os derrotados pelo showbiz. A persona clássica de Woody volta em “full mode” — ansioso, atrapalhado, hesitante e hilário. Mia Farrow, por outro lado, desvia completamente da imagem mais tímida de outros filmes e incorpora uma namorada de gangster, trashy e falastrona. Melancólico, mas com final feliz, “BDR” tem momentos de pastelão bastante inspirados e uma constelação de figuraças do time B da Broadway. Se você acha que a voz do narrador é familiar, saiba que é ele mesmo: Sandy Baron, o Jack Klompus de “Seinfeld”.
Melhor momento: O tiroteio banhado a gás hélio.
Cotação: 7
Escapar da vida mundana, seja por meio da arte, seja por meios mágicos/místicos, é uma busca constante de vários personagens de Allen. Aqui, o cineasta tece suas considerações definitivas sobre o(s) tema(s). E foi feliz, como poucas vezes, no equilíbrio entre pathos, comédia e drama. Se “Memórias” é o “8 ½” de Woody, “A Rosa” é seu “Sherlock Jr.”, sua nostálgica ode à capacidade do cinema de nos levar (ou nos trazer…) a outros mundos. Num outro aceno a “Memórias” (e também a “Zelig”, claro), espicha as brincadeiras metalinguísticas ao imaginar um personagem de ficção que confronta o ator que o interpreta… com resultados tragicômicos. É uma meta-quebra da quarta parede, se é que podemos usar esse tipo de termo. O contraponto agridoce entre a ingenuidade dos protagonistas (Mia e Jeff Daniels) e a barra pesada dos EUA dos anos da Depressão é comovente. É, não por acaso, um dos filmes preferidos do próprio Allen dentro de sua obra, que define a paixão que o diretor sente pelo cinema — e, neste aspecto, não deixa de ser um primo espiritual de “A Era do Rádio”.
Melhor momento: Jeff Daniels aprendendo na marra que a vida real e o cinema têm diferenças. Às vezes agradáveis, às vezes não.
Cotação: 9
Em contraste com sua satisfação com “A Rosa Púrpura”, Allen nunca escondeu sua decepção com o resultado deste longa (o final teria ficado “feliz demais”, segundo ele). Permita-me discordar, Woody. Para mim, é um de seus melhores trabalhos. Também é um de seus maiores sucessos de crítica e bilheteria, além de ter levado três Oscar (Dianne Wiest e Michael Caine venceram como melhores coadjuvantes, e Allen levou o prêmio de roteiro original). Retornando ao formato de elenco “ensemble”, o diretor acompanha as desventuras das irmãs do título, que fazem uma força desgraçada para complicarem suas vidas amorosas. Woody acena explicita e metaforicamente a Bergman mais uma vez, ao espelhar a trama na estrutura narrativa de “Fanny & Alexander” e ao escalar Max von Sydow como o rabugento marido de Barbara Hershey. Mais uma vez, o balanço entre drama e comédia é fino e exato, os personagens são bastante críveis e o nível de humor equivale aos momentos enternecedores. Da lista de “tropes” favoritos do diretor, retornam a preocupação com a finitude humana (o que nos aguarda do outro lado?) e a mãe desequilibrada e com temperamento artístico (Maureen O’Hara), personagem similar à mãe de “Interiores”.
Melhor momento: O encontro entre Woody e Dianne.
Cotação: 9
Na mesma veia nostálgica de “A Rosa”, Woody mistura autobiografia, memória afetiva e ficção para recriar uma América mais simples, galvanizada pelo poder do rádio. Volta a questão do entretenimento como forma de escapatória da realidade — música, radionovelas e programas de humor unindo a nação e providenciando, por alguns momentos, uma saída dos tempos duros da Segunda Guerra Mundial. É um dos filmes mais “fofos” e menos cínicos de Allen, incorporando (e romantizando) o espírito ingênuo da época. Mia Farrow demonstra mais uma vez sua versatilidade, como a vendedora de cigarros que se transforma em personalidade do rádio. Não perca a ponta de Larry “Seinfeld” David, como o vizinho comunista da família de Joe (Seth Green).
Melhor momento: Como um filme estruturado basicamente em vinhetas e esquetes, há diversos momentos bacanas, incluindo a participação da brasileira Denise Dumont vivendo uma Carmen Miranda genérica. Mas legal mesmo é o assalto na sequência de abertura.
Cotação: 8
Aproveitando o fértil momento criativo, Allen soltou mais um filme naquele mesmo ano. Mas o projeto seria um tanto acidentado. Descontente com o resultado do longa, o cineasta deu-se ao luxo de jogar o filme inteiro fora e refilmar tudo de novo, promovendo mudanças decisivas no elenco. Estritamente dramática, a ação é concentrada em poucos cenários e um punhado de personagens, e é filmada em takes longos, reforçando o tom teatral e evocando Tchekhov e Strindberg. Pode ser encarada como uma versão pesadona e solene do bailado sentimental de “Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão”. Não é dos filmes mais queridos pela crítica, mas eu particularmente gosto. As atuações são sólidas (tirando os exageros de Elaine Stritch e os choramingos eventuais de Mia) e a fotografia é magistral.
Melhor momento: As muitas cenas tensas entre as personagens femininas.
Cotação: 7
Pretensioso em sua pesada dramaticidade bergmaniana, este é, para mim, o primeiro tropeço real de Woody. Ainda que, em retrospecto, não seja realmente um mau filme. Apenas quebrou a sequência de maior inspiração na carreira do diretor. É mais um drama acerca de infelicidade conjugal, sonhos não realizados e Mia Farrow de novo no papel de coitadinha. Para o meu gosto, a premissa inicial (Gena Rowlands ouve as sessões de psicanálise de Mia, por acaso, e passa a repensar sua própria vida) soa muito implausível. Mas, como sempre, tem elenco e encenação exemplares, além da bela fotografia do (também bergmaniano) Sven Nykvist.
Melhor momento: O sonho de Marion (Gena Rowlands), tentando conciliar (de forma bem teatralizada) seus dilemas interiores.
Cotação: 5
Um dos mais importantes longas do diretor, coroando sua fase de maior brilhantismo. Empatado com “Manhattan”, é seu melhor filme (pelo menos para mim). Também ecoou em sua obra pelo menos outras duas vezes (“Match Point” e “O Sonho de Cassandra” que são, a meu ver, tentativas mais pálidas de repensar as mesmas questões vistas aqui). Dividido explicitamente entre drama pesado e comédia, segue o dilema de consciência do médico Judah (Martin Landau) e os tropeços sentimentais e profissionais do cineasta Cliff (Allen), em histórias que só se encontram ao final. No fundo, são a mesma história: homens diante de momentos cruciais de suas vidas, a serem definidos por escolhas morais que terão consequências irreversíveis. Assumindo ares sofisticados — referencia Dostoiévski, tangencia conceitos filosóficos e cita James Joyce — Woody também faz boas, porém sutis piadas. O drama de Judah, encenado de forma solene, às vezes até hiperbólica (como na sequência em que ele “volta no tempo” para dialogar sobre moral com o próprio pai), é balanceado de modo perfeito com a desajeitada corte que Cliff faz à personagem de Mia Farrow. Os coadjuvantes estão ótimos (Alan Alda, Sam Waterston e Jerry Orbach merecem destaque) e o próprio Woody se supera, numa versão ainda mais frágil e melancólica de sua persona. Obra complexa, emocionante, múltipla, contemplando as crenças do diretor em assuntos tão distintos quanto a comercialização da arte, a herança cultural judaica, o adultério e… o assassinato.
Melhor momento: O encontro, nos momentos finais do filme, entre Judah e Cliff.
Cotação: 10
Em 1977, Woody fez de uma ode a sua primeira musa — Diane Keaton — um de seus clássicos. Aqui, ao colocar sua segunda musa, Mia, como razão de ser, acabou construindo um filme bem inferior. Comediazinha leve e despretensiosa, retorna ao sobrenatural como recurso narrativo (a protagonista toma “chás” que mudam sua realidade, justificando a referência a Lewis Carroll). Problema: fica difícil para o público identificar-se com Alice. Ela é apenas uma dondoca rica e mal casada do Upper East Side, que procura uma saída para seu vazio existencial. Flerta aqui, toma um chazinho batizado ali, reclama do marido (William Hurt, numa performance sonâmbula) acolá. O desfecho parece particularmente implausível. Começava aqui uma fase de transição para o diretor, depois de uma sequência de 13 anos (quase) sem engasgos.
Melhor momento: Os encontros fortuitos de Mia com Joe Mantegna, que não deixam de ter certa poesia.
Cotação: 4
Essa comédia não deixa de ser uma volta ao passado mais anárquico de Allen, por conta de seu tiroteio indiscriminado em vários alvos. É uma paródia dos pesadelos claustrofóbicos de Kafka; uma homenagem à mística (romantizada) do mundo do circo; um tributo ao cinema expressionista; uma alegoria política a respeito da paranoia com o fascismo; uma sátira noir aos crimes de Jack, O Estripador… Enfim, é muita coisa rolando, num filme estilizado ao extremo (rodado em P&B adequadamente sombrio), mas cujo conteúdo fica aquém do visual elaborado. Gastando um elenco coadjuvante de alto luxo (John Malkovich, William H.Macy, Jodie Foster, Wallace Shawn, Lily Tomlin, Kathy Bates… e Madonna), Woody até consegue fazer graça aqui e ali, num filme que tem elaboração demais e conteúdo de menos.
Melhor momento: O clima comicamente sufocante de algumas cenas.
Cotação: 5
Outro filme importantíssimo, tanto por suas qualidades artísticas quanto pela polêmica que cercou a vida pessoal de Allen na época. Seu personagem é um professor cinquentão que, em crise com a mulher (Mia), se encanta por uma aluna (Juliette Lewis) algumas décadas mais jovem. Na época do lançamento do filme, o casamento de Woody e Mia havia acabado na vida real, justo porque ele apaixonara-se por uma mulher décadas mais jovem… e que era filha adotiva da própria Mia. Pior: no filme, a personagem de Mia é uma chata de galochas, carente em último grau. Allen nunca teve muito problema em inspirar-se em seu cotidiano para ter ideias criativas, mas neste caso a realidade superou, em muito, a ficção. Quem já achava que o diretor era obcecado com seu próprio umbigo soltou fogos. Formalmente, é zoado, cheio de arestas: câmera na mão, planos longos, diálogos sobrepostos e cenas de “depoimentos” que sugerem a filmagem de um documentário. Desnecessário dizer que foi o último filme rodado com Mia. Com o fim do casamento, Allen parece ter perdido uma certa coerência. Talvez a “obrigação” de construir filmes para serem estrelados por Mia tenha direcionado sua obra por tempo demais, para o bem e para o mal. A partir de “Maridos e Esposas”, ele demonstraria muito mais apetite para o risco. Para o bem e para o mal…
Melhor momento: O joguinho de sedução entre Juliette e Woody, espelhando a relação com Muriel Hemingway em “Manhattan”.
Cotação: 8
Woody estava perdido. Não marcava um hit de bilheteria desde “Hannah & Suas Irmãs”. Seus últimos dramas “straight” tinham sido mal recebidos. Sua sempre discreta vida pessoal caiu em bocas-de-matildes, ao trocar Mia por Soon-Yi. O que fazer? Voltar à comédia, claro. A trama é hitchcockiana, mas Allen transforma tudo em farsa — e volta a contemplar o tédio conjugal e o adultério. Citações a “Janela Indiscreta”, “Festim Diabólico” e (no desfecho) “A Dama de Shanghai” justificam a ponte. A dobradinha com Diane Keaton, reatada após 14 anos, soa fresca como nunca. Desencanado de tortuosos dramas psicológicos, Woody volta a causar frouxos de riso na plateia — ainda que, como filme criminal, a trama seja enrolada e implausível demais. Nos anos seguintes, Allen transformaria a crise em sinônimo de oportunidade artística, com resultados variados.
Melhor momento: A cena do elevador. (Acho que nunca ri tanto no cinema. Infelizmente só achei um vídeo dublado em espanhol.)
Cotação: 8
Arte X comercialismo. Sucesso X inspiração. Idealismo X show business. Criatividade como meio de alcançar a imortalidade. Bastidores do mundo do entretenimento. Nostalgia (o filme se passa nos anos 1920). Temas recorrentes para Allen, nesta comédia eles foram burilados à quase-perfeição, sumarizando a angústia que o cineasta demonstra diante das crises criativas e das interferências externas em seu trabalho. Pela primeira vez (descontando o garotinho de “A Era do Rádio”), Allen escalava um outro ator para viver sua persona habitual — o desempenho de John Cusack diante da responsabilidade é excelente. Nos anos seguintes, vários outros intérpretes tentariam o mesmo, chegando a imitar a gagueira e o gestual de Woody, mas nenhum saiu-se tão bem. O resto do elenco não fica nem um pouco atrás, embarcando com gosto no clima farsesco que toma conta da peça-dentro-do-filme. O roteiro tem clichês (como a namorada burra do mafioso), mas a visão de uma Mary-Louise Parker novinha compensa tudo.
Melhor momento: O final do gangster (Chazz Palminteri) que aspirava a ser dramaturgo.
Cotação: 9
Outro bom momento cômico da década, no qual Allen usa referências “highbrow” (coro grego, citações mitológicas) para contrastar com a protagonista, a prostituta obtusa vivida por Mira Sorvino — que ganhou Oscar pelo papel. Comparando com seu antecessor e seu predecessor, é um filme mais despretensioso. Há espaço para ótimas gags, a participação do coro é um achado, mas a direção de atores é meio irregular. O romance afetado e forçado entre Peter Weller e Helena Bonham-Carter, por exemplo, não me convence. Ainda assim, fez merecido sucesso de público.
Melhor momento: O primeiro encontro entre Lenny (Allen) e Linda (Sorvino). Ela: “Você não é desses caras bem-dotados, que ficam pelados por aí, arrastando sua coisa e batendo pelos móveis, né?” Ele: “Acredite, não poderia fazer isso nem que eu quisesse”.
Cotação: 7
Ele estava realmente esforçando aqui, a ponto de arriscar-se… num musical. Amado por boa parte da crítica, fracasso de bilheteria, é para mim um dos menos interessantes e mais artificiais filmes de Allen. Claro, há o artificialismo inerente ao gênero musical. Claro, há um artificialismo inerente também à toda a obra do diretor, eivada de personagens com aspirações e dilemas não raro implausíveis. Elevado a essa potência toda, o tom é de overdose. Fotografado em locações deslumbrantes em Nova York, Paris e Veneza, é agradável, mas não consegue convencer em momento algum (Julia Roberts namorando com Woody?). É preciso ser muito fã de Allen e muito fã de musicais para não se entediar, ao menos em algum momento.
Melhor momento: Allen cantando “I’m Through with Love” num canal veneziano.
Cotação: 5
Boa parte dos aficionados por Allen enxerga neste filme sua última obra-prima de fato. Realmente, trata-se do melhor trabalho do diretor nos últimos 15 anos, fase europeia inclusa. É um filme de paradoxos. Ao mesmo tempo em que fisga a narrativa de “Morangos Silvestres” (Bergman…), entope o filme com uma quantidade inédita de palavrões. Faz com que os personagens criados por seu protagonista, um escritor com bloqueio criativo, saltem para a “realidade”, enrolando ainda mais sua vida. A caminho para ser homenageado por uma pomposa universidade, resolve levar uma vulgar prostituta como companhia. Pela primeira vez, assume um papel ambíguo e por vezes até antipático — sexista, escroto com as mulheres, misantropo. Colocando a imaginação de Block, o protagonista, como fio condutor, Allen aproveita para fazer digressões quase surreais — achados como o homem fora de foco (Robin Williams) ou enxergando seu rival Larry (Billy Crystal) como o próprio diabo. Não deixa de ter suas conexões com “Memórias”, ao abordar o cruzamento entre crise criativa e turbulências pessoais — além de mostrar como Allen, ou seus protagonistas, tentam lidar com as exigências e expectativas do público. Filme sólido, com roteiro rico em referências, mas sem descuidar do humor, demonstrando que, diferentemente de seu personagem, Allen estava transbordando de imaginação.
Melhor momento: A visita de Harry Block ao inferno.
Cotação: 9
É chato ficar vendo paralelos em todos os filmes do cara, mas… Se Allen já quis fazer um “La Dolce Vita”, ei-lo. Até a fotografia em P&B reforça a associação. Na prática, é o “mesmo filme de sempre”: escritor (Kenneth Branagh) tenta lidar com suas neuroses em meio a uma crise profissional. O diretor demonstra todo o seu desprezo pela o culto às celebridades transformando Lee (Branagh) num apalermado jornalista, fascinado e apequenado diante do glamour dos ricos e famosos. Não é das obras mais memoráveis do diretor, muito por causa da performance de Branagh, que se limita a parodiar os tiques de Allen. Isso é ruim, já que o protagonista deveria ser o único ponto de identificação do público — os famosos, intencionalmente, são retratados de maneira unidimensional e caricata. O roteiro, construído em episódios, ajuda a tornar o filme mais palatável.
Melhor momento: Charlize Theron.
Cotação: 5
Pouco comentado pelos brasileiros, é um dos meus favoritos filmes do período. Resgatado de uma ideia original que Allen teve em 1969, o longa retoma a veia da nostalgia dos anos 1920 e 30 e ganha muito com as excepcionais performances de Sean Penn (que não faz um alter-ego de Woody) e Samantha Morton (interpretando uma muda!). Como “musical” é até mais eficaz que “Todos Dizem Eu Te Amo”, com sua onipresente trilha de jazz vintage. O personagem de Penn, um guitarrista egomaníaco, mulherengo e arrogante, equilibra o fascínio romantizado que Allen empresta ao filme. É um dos tipos mais interessantes e complexos construídos pelo cineasta.
Melhor momento: As “conversas” entre Penn e Samantha.
Cotação: 7
Nova década, novos problemas criativos. Começava aqui uma sequência de filmes menores, de baixos bem baixos e altos mais ou menos elevados. “Trapaceiros” soa preguiçoso desde a gênese, já que é um remake de um filme dos anos 1940. Tentativa clara de buscar um humor mais despretensioso, o roteiro é ao mesmo tempo implausível e óbvio. Sem aparecer na tela desde 1997, Woody parece envelhecido para seus então 65 anos. A partir daqui, surgiria um clichê nas resenhas sobre os trabalhos de Allen: “É apenas um filme mediano, mas um filme mediano de Woody Allen é melhor do que a média do atual cinema americano” (ou algo do tipo).
Melhor momento: Qualquer uma aparição de Hugh Grant, parodiando a si mesmo impiedosamente.
Cotação: 3
O próprio diretor apontou (no livro de entrevistas com Eric Lax) que este seria, provavelmente, seu pior filme. Decerto que pouca coisa funciona a contento aqui. Como protagonista, Woody está hesitante e inconvincente, e sua química com Helen Hunt inexiste. O roteiro volta a apelar para o misticismo (no caso, hipnotismo) para fazer a história prosseguir, o que acaba parecendo forçado. Como comédia, deixa a desejar; como trama de mistério, beira o incompreensível. Para compensar, a direção de arte e a fotografia exibem o capricho habitual, recriando uma atmosfera noir à base de tons sépia.
Melhor momento: Woody se esforçando (?) para rejeitar a bela Charlize Theron.
Cotação: 2
Dos três filmes em sequência em que Allen tentou retornar a um estilo mais leve de humor, este é o mais bem resolvido. Ainda que perca, de longe, para qualquer uma de suas comédias rasgadas do começo dos anos 1970. Talvez seja porque aqui ele tinha algo a dizer, além do conteúdo cômico. Woody nunca escondeu seu desprezo pelos grandes estúdios e como detesta sofrer interferências sobre seu trabalho. Ele transforma isso tudo numa “vingança”: seu personagem, um cineasta cultuado no passado, mas hoje na pior, fica cego às vésperas de assumir um filme de grande orçamento. E, mesmo apavorado, segue em frente, literalmente dirigindo às cegas. É uma comédia-de-uma-piada-só, mas se sustenta. Entre os coadjuvantes, destaque para um impossivelmente bronzeado George Hamilton.
Melhor momento: Qualquer um com Woody lidando com sua inexplicável cegueira.
Cotação: 5
Massacrado pela crítica (Leonard Maltin diz que é o pior dos filmes de Allen), fracasso de público, este filme é o meu Allen favorito do terceiro milênio. E não, não tem nada a ver com a minha declarada paixonite pela Christina Ricci (uma preferência na qual também não tenho muitos pares. Mas é uma história para outro texto.) É um longa no qual ele demonstrou que estava com apetite para tentar algo novo. Sim, a história central (aspirante a escritor se apaixona por garota doidivanas e instável) é antiga. Mas o personagem que Allen escolheu para interpretar, o professor Dobel, não tem nada a ver com sua persona clássica: é um sujeito agressivo, cínico e paranoico, com um pessimismo caricato. É a primeira vez também que o diretor foca num casal bem mais jovem como protagonista, em vez de gente de sua própria geração. Uma interpretação freudiana simplória: Allen olha para o próprio passado personificado na figura de Jerry (Jason Biggs) e pede ao destino uma segunda chance, tentando convencer o jovem a livrar-se da namorada (que só vai lhe dar problemas mesmo) e a abandonar o sonho de ser escritor em Nova York (afinal, os empregos estão todos em Hollywood). Para manter o nível cômico em alta, o apoio dos coadjuvantes-figuraças Stockard Channing e Danny DeVito é fundamental.
Melhor momento: Christina, sua sapeca.
Cotação: 7
E Woody seguia tentando buscar fôlego novo. A invenção da vez foi contar a mesma história duas vezes, uma de forma cômica, outra de maneira trágica. É uma brincadeirinha narrativa, um exercício. A parte cômica funciona bem melhor, apesar (ou por causa) da histeria de Will Ferrell. Não chega a ser um de seus filmes mais memoráveis. Os saltos entre comédia e drama são abruptos e o elenco da parte dramática não convence muito. As críticas foram condescendentes, mas simpáticas. Em breve, ele começaria a quarta fase “oficial” de sua carreira…
Melhor momento: As participações de Ferrell.
Cotação: 5
Em 2005, Woody Allen parecia encaminhar-se para seu crepúsculo criativo. Sim, ele tentara voltar a gags mais simples, e sim, ele tentara reinventar sua fórmula particular de comédia romântica. Mas desde “Desconstruindo Harry”, nenhum longa seu tinha sido particularmente empolgante. Há tempos também ele não era mais unanimidade entre os críticos, e seus filmes mal conseguiam se pagar (“Melinda” teve um lançamento “limitado” nos EUA, ou seja, rodou apenas no circuito de filmes de arte). O que fazer? O impensável: abandonar Nova York, cenário de quase toda a sua obra, e partir para a Europa. Radicando-se em Londres, fez logo de cara seu filme mais impactante desde “Harry”. “Match Point” representava a volta a um estilo de drama mais austero (apesar dos breves interlúdios cômicos a cargo de Stephen Fry), lidando com dilemas de consciência, questões morais e a importância decisiva do acaso sobre o destino. O peso do drama contrastava com a sensualidade gráfica que o diretor emprestou às cenas mais quentes. De quebra, encontrava afinal uma nova musa, na figura improvável de Scarlett Johansson. OK, os fãs mais atentos perceberam que Woody estava requentando temas com os quais já havia lidado, com muito mais habilidade, em “Crimes e Pecados”. E que a trama central também é muito aparentada à de “Um Lugar ao Sol”, que por sua vez baseava-se no livro “Uma Tragédia Americana”. Outras implicâncias podem residir no retrato caricato que o autor faz da burguesia britânica. Auto referências e caricaturas à parte, o fato é que o filme ressuscitou a carreira de Allen, tornando-se hit de crítica e público.
Melhor momento: Assista o vídeo. Podemos culpar o pobre e incauto Jonathan Rhys Meyers?
Cotação: 7
Por cima da carne-seca como há muito tempo não ficava, Woody quase põe tudo a perder com o filme seguinte, também passado em Londres. “Scoop” é uma anêmica comédia de mistério, baseada em personagens improváveis e situações forçadas — ao ponto de quase esbarrar na farsa pura e simples. Tá, podem dizer que o roteiro é uma homenagem às comédias amalucadas dos anos 1940. Mas sobra ingenuidade e falta engenho. Scarlett, claro, está uma gracinha, mas Hugh Jackman, suave e “flanêur”, é uma decepção. Woody volta a atuar e também decepciona: gaguejante, parece não ter certeza a respeito das piadas que ele mesmo escreveu. Tique autoral da vez: volta a recorrer ao sobrenatural como ponto importante da trama (as dicas para a solução do mistério são passadas pelo espírito de um jornalista inglês).
Melhor momento: Woody tentando se passar por prestidigitador.
Cotação: 3
Decepcionante, mas não tanto quanto “Scoop”. O problema é o potencial desperdiçado. Uma história densa envolvendo crime, a inexorabilidade do destino, moral e consciência… e um resultado inferior. A coisa se agrava pela proximidade da trama com a história de dois outros filmes bem melhores: “Crimes e Pecados”, obviamente, e “Match Point” (feito apenas dois anos antes). O tom, entretanto, é mais sombrio e fatalista — e moralista também, uma vez que Allen julga (e condena) explicitamente seus personagens. O elenco é forte (Ewan McGregor, Colin Farrell e Tom Wilkinson), mas Farrell, fora de controle, quase estraga o filme com seu “overacting”. Alguns críticos compararam o longa às “peças morais” da Idade Média, alegorias hiper-realistas a respeito de escolhas entre o bem e o mal. Pode ser, pode ser.
Melhor momento: O final.
Cotação: 4
Sexy, desigual e meio destrambelhado, “Vicky Cristina Barcelona” é quase um corpo estranho na obra de Allen. Uma “comédia romântica” mais intensa do que o habitual para o diretor, que retrata um menàge a trois na cara dura (nada explícito, não se exaltem). É um filme de clima envolvente, mas tem vários aspectos bizarros. Woody apresenta uma imagem romantizada (e clichezenta) do povo espanhol, com seu “sangue quente” e sua “sensualidade à flor da pele”. Sua câmera parece a de um turista encantado com as belezas locais. Entretanto, o vigor quase jovial com que o cineasta penetra (ops) na intimidade do “threesome” é genuíno; ele não criava personagens tão interessantes e vitais há anos. Penélope Cruz entra com garbo na galeria de mulheres sedutoras e mentalmente instáveis de sua filmografia; ela tornou-se a quinta atriz a ganhar um Oscar por um filme dirigido por Allen.
Melhor momento: A cena da cozinha.
Cotação: 7
Woody volta triunfante a Manhattan, depois de uma temporada europeia de saldo positivo. No retorno, veio pisando em terreno mais do que seguro. Escala ninguém menos que Larry David para ser seu alter ego, e o cara sai-se muito bem na tarefa (ainda que, basicamente, bisando a persona de “Curb Your Enthusiasm”). Começa como uma comédia romântica improvável — cínico profissional de meia-idade tem sua vida transformada por uma ingênua e energética garota do interior. E vai se transformando numa farsesca crítica de costumes, mostrando o choque cultural experimentado pela jovem Melodie (Evan Rachel Wood) e seus pais, vindos do interiorzão dos EUA e caindo de boca na boêmia do Upper East Side. As entrelinhas trazem, que surpresa, as preocupações de sempre com o sentido da vida, as dificuldades dos relacionamentos amorosos e a interferência decisiva do acaso (refletido até no título original, que perde o sentido na “tradução” brasileira). Bom filme, mas… imagine-o sendo rodado nos anos 1980, com o próprio Woody no papel central?
Melhor momento: As demonstrações do infatigável cinismo (ou seria niilismo?) do protagonista Yetnikoff.
Cotação: 6
Em 1987, Woody Allen se deu ao luxo de jogar um filme prontinho fora e refazer tudo do zero. Tendo finalizado o drama “Setembro”, o cineasta — insatisfeito com o resultado — reescreveu extensamente o roteiro, trocou boa parte do elenco e refilmou tudo. Claro que eram outros tempos: o diretor vivia então (a fase final de) seu apogeu criativo, um período que compreende os filmes entre “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1977) e “Crimes e Pecados” (1989). Seu nível de exigência consigo mesmo e seu vigor criativo certamente eram muito maiores do que os dos dias atuais. Talvez por isso Allen tenha dado seu ok a este “Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos”, o longa mais preguiçoso e desinspirado que ele fez desde… “Scoop”? “O Escorpião de Jade”? Desde… sempre? Será que o Allen de 1987 ficaria satisfeito com este novo filme?
Melhor momento: As cenas com Lucy Punch, único alívio cômico do filme.
Cotação: 1
As reações a este filme aqui no Brasil, tanto por parte da crítica quanto (especialmente) do público, foram um tanto exageradas. Tudo bem, o último longa de Allen representa um avanço e tanto em relação ao tosco … “O Homem dos Seus Sonhos”. Mas não justifica os suspiros que ecoaram pelas redes sociais por semanas, louvando o filme. Como em “A Rosa Púrpura do Cairo”, o roteiro apela ao sobrenatural, mas com a lógica invertida: agora é o protagonista que deixa o mundo real, voltando no tempo para uma Paris onírica e romantizada. O tom fantástico libera Allen para chutar a plausibilidade longe (conhecer Cole Porter, o casal Fitzgerald e Hemingway na mesma noite? Qualé!). Em relação aos personagens, a má vontade para com as mulheres, demonstrada no filme anterior, se repete (Rachel McAdams e Mimi Kennedy interpretam tipos consumistas e fúteis, e Marion Cottillard aparece como a maluquete-sedutora-de-espírito-indomável da vez). O desembaraço de Owen Wilson como “dublê” de Woody compensa. Leve, belamente fotografado, é um filme agradável, que aborda questões caras à “oeuvre” de Allen (criatividade, infidelidade, nostalgia) sem deixar o humor de lado.
Melhor momento: O detetive perdido no Palácio de Versalhes, em algum momento do passado.
Cotação: 6
Mais um filme “turístico”, desta vez dividido em episódios e francamente mais despretensioso que os anteriores. É puro “eye candy”, justificado pela beleza dos cenários e pela descontração das performances. Três dos quatro causos são pura galhofa, em diferentes tonalidades. O segmento com Roberto Benigni faz uma crítica quase surreal à cultura da fama imerecida e dos paparazzi. A historinha estrelada por (uma linda) Penelope Cruz remete à picardia das chanchadas italianas dos anos 1960. E o próprio Woody, que não se autodirigia desde 2006, coestrela o episódio sobre um genial cantor de ópera que só consegue soltar a voz debaixo do chuveiro. Completando, há um triângulo amoroso com Jesse Eisenberg, Ellen Page e Greta Gerwig, com uma ponta de Alec Baldwin. Filminho leve, feito para que o diretor tomasse fôlego rumo à maior complexidade do longa seguinte.
Melhor momento: As cenas em que Woody contracena com Judy Davis.
Cotação: 6
Allen usa o arcabouço da peça “Um Bonde Chamado Desejo” para criar seu filme mais denso e aventureiro em vários anos. Cate vive uma socialite caída em desgraça (pessoal e financeira) que precisa da ajuda da irmã pobre (a também ótima Sally Hawkins) para se reerguer. Sua instabilidade e egomania vão a levar, como a Blanche de “Um Bonde”, a uma sequência de situações-limite, dragando todos à sua volta. O drama é pesado e ruma para uma conclusão previsivelmente sombria. Com habilidade, Woody não deixa a narrativa se arrastar, equilibrando dramalhão, pathos e momentos genuínos de alívio cômico. “Blue Jasmine” é, acima de tudo, um estudo de personagem tornado antológico pela interpretação oscarizada de Cate Blanchett. É mais um retorno do diretor a um tipo muito comum em seus filmes, a protagonista sedutora-mas-desequilibrada. Também apresenta ousadias formais, no modo como desconstrói o fluxo temporal via flashbacks, narrando a lenta queda da protagonista no abismo. E complementa a história central com subtramas muito bem interpretadas por um ótimo elenco de apoio, que inclui Louis CK, Bobby Cannavale e Andrew Dice Clay. Sua obra mais complexa desde “Match Point ”— e, em vários aspectos, o supera.
Melhor momento: O desmoronamento final de Jasmine, na última cena do filme.
Cotação: 7
Depois do mergulho fundo de “Blue Jasmine”, Woody optou por nadar no raso. Seu 44º longa é mais uma comédia peso-pena, seu primeiro filme de época desde “O Escorpião de Jade”, se não contarmos as viagens no tempo de “Meia-Noite em Paris”. Impossível não se encantar com o charme de Emma Stone, que vive uma jovem com (supostos?) poderes mediúnicos que se apaixona por Stanley (Colin Firth, em interpretação pouco empolgada). Problema é que o cara é um cético profissional, disposto a desmascarar a moça como uma charlatã. O subtexto é previsível: o romance entre um cínico de carteirinha e uma mulher mais jovem e sonhadora, que acaba mudando o modo com que ele vê o mundo. É a mesma base vista em “Manhattan” e “Tudo Pode Dar Certo”. A diferença é o retorno do componente sobrenatural, mais uma vez tratado de forma ambígua pelo diretor.
Melhor momento: O momento a sós entre Emma e Colin no observatório astronômico.
Cotação: 4
Joaquin Phoenix até que se esforçou (chegou a ganhar uma barriga considerável para compor seu personagem), mas pouca coisa dá certo neste drama com gosto de déjà vu. Phoenix vive um professor universitário mulherengo e beberrão, obcecado pela ideia do assassinato como um ato moral. Problema é que sua jovem namorada (Emma Stone) discorda do mestre. A ambição de Allen aqui era combinar Hitchcock e Dostoiévski… algo que ele já fizera em “Match Point”, com resultado muito mais convincente.
Melhor momento: A trilha sonora.
Cotação: 2
O problema (ou, talvez, a solução) de “Café Society” é o mesmo encontrado nos discos do Iron Maiden, no desfile do ano que vem na Sapucaí ou, enfim, em todos os filmes de Allen nos últimos 20 e tantos anos. Você sabe como a história vai progredir, conhece os personagens e suas motivações, sabe até que o fim do filme se aproxima (pouco depois dos 90 minutos de duração). Lembramos do romance frustrado entre Cliff e Halley em “Crimes e Pecados”, da Nova York romantizada de “A Era do Rádio”, dos gângsters ameaçadores e caricatos de “Tiros na Broadway”. Em algum momento dos anos 90, o diretor deixou de observar a vida real e se concentra em recriar, “em cativeiro”, pequenos microcosmos pelos quais se interessa, e neles encaixa seus personagens e temáticas de sempre. Dito isso, “Café Society” é extremamente agradável, bonito de se ver (fotografia linda) e, embora divertido e despretensioso, muito mais profundo que o “sério” (e abismal) “Homem Irracional”.
Melhor momento: A fotografia “quente” de Vittorio Storaro.
Cotação: 6
Marco Antonio Barbosa é jornalista, edita o Telhado de Vidro e o projeto musical Borealis. Twitter: @BartBarbosa