A esta hora da noite, o trânsito na cidade definha. Um a um, os carros seguem para longe dali, tragados por seus destinos em ruas, vielas, garagens. O mundo adormece na intimidade de cada casa, a cidade aquieta, esgotada, apagando suas luzes por dentro. Aqui fora, o caminhão branco, sujo e forte avança lento, furioso pela rua repleta dos entulhos do dia, seguido de perto por dois homens que correm de uma calçada a outra, recolhendo os enormes sacos de plástico negro para lançá-los ao estômago imenso do rinoceronte de aço e rodas que avança esganado e barulhento.
Seguros como dois velhos violinistas durante o dueto de suas vidas, eles executam sua tarefa com tanta certeza e tanta graça que a noite ganha os acordes de uma música leve, doce, suave, perfumada de uma atmosfera profunda, para além do arroto violento da máquina arrastando o chorume de nossos restos, em seu ronco grave de mil violoncelos.
De repente, na leveza com que esses homens realizam seu trabalho pesado, a vida chega a parecer mais fácil e delicada. Eles valsam entre as calçadas, os braços abertos carregando sacos de lixo, as pernas firmes de quem resistiu até aqui aos trancos e às carreiras de um caminho esburacado. E deslizam no asfalto frio com a aparente facilidade de um ginasta olímpico voando sem asas sobre o tempo, na esteira lenta do veículo que segue engolindo a porcaria do mundo. O mesmo mundo que não os vê em seu belo e limpo esforço.
Pronto. Libertas do lixo, as calçadas ressurgem nuas, novas, reparadas. Os dois homens sorriem a alegria de quem acaba de dar jeito a todas as coisas. E saltam impecáveis, paralelos, ao estribo do caminhão que acelera gigantesco rumo à próxima rua.
Então a vida, imprevisível como o amor e seu susto, ganha a forma de um elemento-surpresa: uma lata vazia, dessas que os cretinos atiram ao chão com indiferença tão logo bebem todo seu conteúdo, uma lata esquecida num meio-fio que vai ficando para trás e só não escapa ao olhar vigilante e caprichoso de um dos garis. Ele nota a lata esquecida na rua e isso lhe dói feito uma vergonha, uma falha em sua obra cuidadosa de limpador. Há quem vive de construir casas. Tem gente que abre a barriga das outras, gente que dirige ônibus, que vende coisas, gente que canta, gente que ganha dinheiro dando banho em cachorro. Ele é do tipo que tira o lixo das ruas.
E como as crianças que aprendem a respirar no instante mesmo em que nascem, ele sentira desde sempre, em algum lugar seguro dentro de sua certeza, que fazer bem o seu trabalho era o que lhe dava rumo na vida. O que lhe permitia dormir tranquilo tanto quanto um médico, um trapezista ou um pescador que paga suas contas e seu direito a viver. No exercício de seu ofício, nada é mais urgente que fazê-lo bonito. É o que lhe sobra. Fazer o que sabe sem meios esforços, sem omissões, sem latas deixadas para trás.
Se ao menos ele não a tivesse visto. Mas não. Ele viu a maldita lata na rua. Se não a recolhesse agora, sabia que mais tarde, em casa, antes de dormir, sua consciência limpa lhe cobraria essa falta. E no espaço breve que antecede um segundo, seus músculos explodem num salto feroz e ele pula do caminhão para resgatar o objeto perdido. Daqui a instantes, esse honesto funcionário terá dado a seu trabalho a dignidade de uma tarefa cumprida. E é como se todas as mazelas da vida ganhassem a solução mais simples e completa. Num tempo em que pessoas se matam sem culpa, em que a gentileza e a gratidão se tornaram raras como diamantes e o amor não passa de palavra gasta e repetida sem sentimento, um invisível e luxuoso lixeiro salta de seu estribo para resgatar uma única e ridícula latinha desvalida.
Vai, bravo e limpíssimo irmão. Vai como as pessoas que ainda miram as outras com ternura, que acreditam no poder dos pequenos gestos gentis, que fazem bolos e surpresas, adotam crianças, cachorros e novas posturas. Vai como aquela gente que toma sorvete sorrindo depois da comida e acredita em pequenos milagres. Como quem simplesmente se importa. Vai com a grandeza de saltar de seu conforto e cumprir sua função com a excelência rara dos santos e dos heróis. Vai, correto trabalhador, que a possibilidade encanta e o mundo é viável, sim.
Ele toma a lata do chão e a lança elegante, certeiro, de longe, à barriga do caminhão. Feito. Seu trabalho perfeito se conclui e ele volta correndo, envolto em íntima satisfação, a seu lugar na história, a seu canto no estribo da máquina.
Corre tão contente e imperturbável que nem percebe um carro inesperado, surgido do negrume da noite, acelerando pela rua vazia como quem foge de um sonho ruim. Para os garotos bêbados acotovelados no interior do automóvel imprevisto, aquela sombra correndo ali fora no meio da pista é pouco mais que um buraco no asfalto. Invisível. “Você atropelou o cara!”, “Que cara?”, “Aquele ali no chão”, “Não vi, pô!”, “E agora?”, “Será que matou?”, “Tudo bem, é só um lixeiro”.
É só um desprezível, dispensável e irrisório lixeiro.
O automóvel repentino acelera e se extingue na noite. Pela janela, o jovem desabilitado ao volante arremessa para fora algo que não mais lhe serve. Uma lata de cerveja. Vazia. No chão, o invisível e luxuoso lixeiro espera o socorro que nunca virá. Seus companheiros de lida conversam, as mãos à testa. Anotou a placa do carro? Não. Ninguém viu. Ninguém vê.
E assim, para além das nossas vistas, o mundo dorme na intimidade de cada casa. A cidade repousa em suas luzes apagadas por dentro. Aqui fora, o rabecão do instituto médico legal recolhe do chão o corpo cansado de um lixeiro. Ele dorme sereno, limpo, isento. Invisível e luxuoso irmão, ao fim de seu dia de trabalho.