Miley Cyrus, a Carla Perez americana

Miley Cyrus, a Carla Perez americana

Em matéria de vulgaridade na música pop, o Brasil está pelo menos duas décadas à frente dos Estados Unidos. Carla Perez, dona do rebolado mais famoso, tornou-se, assim, símbolo de um dos piores momentos na história da indústria fonográfica brasileira. E o que a tornava tão especial? Simples: a bunda

Em 1996, o grupo É o Tchan lançou “A Dança do Bumbum” como single do — hoje felizmente esquecido — álbum “Na Cabeça e na Cintura”. Como o próprio nome indica, a faixa enaltecia, numa letra escrita por um semianalfabeto, as nádegas do corpo feminino, que assumiam papel de destaque nas coreografias encenadas por voluptuosas dançarinas. Versos como “vai descendo gostoso, balançando a bundinha” davam o tom da axé music, um fenômeno local da Bahia, mas que rapidamente foi abraçado pela indústria fonográfica brasileira. Os produtores perceberam que tinham em mãos um produto de péssima qualidade artística, porém altamente rentável: investir na sensualização vulgar do corpo da mulher era certeza de lucro. De um lado, agradava-se o público feminino, estimulado a imitar as coreografias enquanto corriam atrás de um trio elétrico nas micaretas. Viam-se garotas malharem nas academias para depois se cobrirem, da cabeça aos pés, com um minúsculo abadá multicolorido, que as transformava instantaneamente numa espécie de outdoor ambulante, tamanha a quantidade de marcas de patrocinadores estampada na roupa. De outro, satisfazia-se também o público masculino, formado em boa parte por praieiros estultos da classe média, interessados nos closes ginecológicos das dançarinas e nas capas da “Playboy” que elas estampavam, formando um exército involuntário de quirômanos “axezeiros”.

Foi nessa “idade das trevas” da música pop brasileira, liderada pelo sucesso estrondoso do grupo É o Tchan, que “bunda” e “rebolado” tornaram-se duas palavras repetidas à exaustão nos hits radiofônicos. Nunca o analfabetismo foi tão prestigiado como pré-requisito no currículo de um compositor. Era meado da década de 1990 e o Brasil conhecia, pela primeira vez na história, uma “banda” cujo principal destaque não era nenhum dos músicos ou dos cantores, mas sim as dançarinas em performances rebolantes. Carla Perez, dona do rebolado mais famoso, tornou-se, assim, símbolo de um dos piores momentos na história da indústria fonográfica brasileira. E o que a tornava tão especial? Simples: a bunda. Isto mesmo: ela não tocava nenhum instrumento, tampouco cantava; tudo o que fazia era rebolar a bunda como ninguém. E assim era forjado um ídolo pop na “idade das trevas” da axé music.

Patrimônio nacional

Para o brasileiro que vivenciou a passagem desse contexto, chega a ser incompreensível o porquê de o “twerk” de Miley Cyrus ter causado tanto furor nos Estados Unidos. Para quem não sabe, “twerk” é a expressão em inglês que designa a dança em que a mulher balança suas nádegas para sensualizar seu corpo, numa tentativa de excitar o parceiro com o rebolado dos quadris. Resumidamente, trata-se da “dança do bumbum” dos estadunidenses, que, com pelo menos duas décadas de atraso em relação ao Brasil, começam a experimentar o gostinho da vulgarização exacerbada do corpo da mulher, tornada um objeto de desejo e de consumo, por uma indústria fonográfica oportunista e cada vez menos interessada… na música!

No entanto, o escândalo que o “twerk” de Miley Cyrus provocou nos Estados Unidos talvez possa ser explicado por outros fatores. O principal deles relaciona-se ao fato de que a dançarina é uma cantora que se tornou famosa ainda na infância, quando estrelou o seriado “Hannah Montana” da Disney. Sua carreira, portanto, foi construída em cima de uma base de fãs formada por crianças e adolescentes, os quais cresceram com seu ídolo infantil. Daí veio o impacto: uma garota de 21 anos, que até bem pouco tempo cantava o amor romântico, de repente surge no “Video Music Awards” da MTV em microroupas bege coladíssimas, a encenar uma coreografia constrangedora, pela qual simula a prática de sexo anal com seu parceiro de cena, o cantor Robin Thicke. A música (“Blurred Lines”) era o que menos importava. Quem viu a apresentação só conseguia lembrar-se de uma coisa: o “twerk” — a dança vulgar e de mau gosto. Efeito igualzinho àquele proporcionado pelas dançarinas da axé music nos idos da década de 1990. A diferença é que, em matéria de vulgaridade na música pop, o Brasil está pelo menos duas décadas à frente dos Estados Unidos. A dança do bumbum é patrimônio nacional!

Carla Perez americana

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A cantora Miley Cyrus durante sua performance de “Blurred Lines” no VMA 2013

É evidente que a dança de Cyrus foi meticulosamente pensada pelo produtor que dirige sua carreira. Quando a cantora estadunidense subiu no palco do VMA, ela sabia exatamente o que ia fazer. O objetivo, com seu “twerking”, era chocar a plateia. E, a julgar pelas reações exaltadas que se viu na imprensa dos EUA, ela conseguiu. Mas falhou miseravelmente no seu propósito autopromocional: Miley Cyrus quis ser vista como uma cantora cheia de sensualidade, espécie de Madonna sem rugas do século 21. No fundo, abusou do sex appeal para compensar o que lhe falta em talento musical. O máximo que conseguiu foi se tornar a Carla Perez americana — em uma versão esquelética e com um par de glúteos bem menos generosos.

Recentemente, a provar que o escândalo do “twerk” no VMA foi um movimento de marketing calculado de forma meticulosa, Miley Cyrus voltou a ocupar as manchetes do mundo inteiro com o lançamento do videoclipe de “Wrecking Ball”, single do seu novo álbum “Bangerz” (2013). Mais uma vez, o que menos importou na carreira da moça foi a música: nas resenhas dos jornalistas, nos programas de televisão, nas revistas de fofoca, nem uma palavra sobre a música, sobre seu desempenho como cantora. Só se falou da nudez quase explícita da jovem que, calçando tão somente um par de botas, rodopia numa bola de ferro de demolição, enquanto alterna cenas em que aparece de calcinha na posse dum martelo, lambendo-o lascivamente, como se fosse um instrumento fálico. O desempenho é tão apelativo que chega a ser digno da classificação de filme pornô softcore.

O videoclipe de “Wrecking Ball” assinala, definitivamente, a tentativa de Miley Cyrus de distanciar-se da personagem Hannah Montana que fazia sucesso com hits, até certo ponto ingênuos, como “The Climb”. Agora, a menina doce do Disney Channel, que fazia a festa das crianças em todo o mundo, ficou para trás. A Miley Cyrus que gravou “Bangerz” virou adulta precocemente e escolheu o “twerk” em detrimento da voz. Decerto uma aposta perigosa, ainda mais para alguém tão jovem. Resta saber quanto tempo ela durará num mercado tão competitivo como o da música pop, já saturado pela vovó Madonna e seus “toyboys”, pelos escândalos pré-fabricados de Lady Gaga e pelo show erótico-apologético dos glúteos da chacrete Beyoncé — dona de um rebolado bem mais convincente no palco, embora com um repertório tão ruim quanto o de uma Ivete Sangalo. De consolo, ainda resta para Miley Cyrus o lugar de “rainha da dança do bumbum” no Brasil, título sem dona desde que Carla Perez aposentou-se do mundo das subcelebridades sem talento e acorreu aos “braços de Deus”, buscando a expiação da sua extensa lista de pecados (aí incluídos o assassinato permanente da língua portuguesa nas raras vezes em que abriu a boca para falar, além de ter sido cúmplice na tortura dos ouvidos humanos realizada pelo É o Tchan). Mas não sei sinceramente se o “twerk” é páreo para a “dança do bumbum” brasileira. Afinal, em matéria de rebolado vulgar embalado por música desprezível, a axé music está pelo menos duas décadas à frente dos Estados Unidos. Miley Cyrus poderia doutorar-se nessa “arte” por aqui.

Rafael Theodor Teodoro

Advogado, crítico de música e literatura.