Uma das coisas que nos distinguem dos animais é a capacidade de intervir de maneira consciente no mundo e em nossa própria vida. A isso se dá o nome de “práxis”, ou seja, a consciência das razões pelas quais se faz ou se deixa de fazer algo. Por tal motivo, é coerente dizer que o ser humano é dotado de “propósito”, vocábulo que, do latim, quer dizer “aquilo que é colocado adiante”, ou seja, as razões que nos motivam.
O propósito de uma vida pode ser variado: ser feliz, ser caridoso, casar, ter filhos, aprender um ofício, conhecer todos os países, alcançar a independência financeira, ou tudo isso junto… Definitivamente, as possibilidades são tão vastas quanto o conceito do que é “propósito”. Evidentemente, qualquer defensor da Democracia há de dizer que propósito é algo individual e que, contanto não infrinja direitos alheios, merece respeito e carece de julgamentos, já que cada um sabe o que cabe melhor em sua agenda. Mas não poderia deixar passar em branco um profundo incômodo com a obsessão pela magreza e pela beleza, que vêm sendo elevadas mundo afora ao mais alto pedestal dos propósitos.
Veja bem, não que cuidar da aparência seja algo desimportante. A involução a nós inerente infelizmente perpassa a primeira impressão, que — mais infelizmente ainda — repousa no exposto visualmente. Além disso, fazer as pazes com o espelho pode ser um passo interessante para o próprio desenvolvimento. O que mais fere, no entanto, é que a estrada dessas pazes frequentemente é singular e estreita, com apenas uma via: só se existe plenamente sendo magro e lindo.
Conhecer a origem da idolatria pela magreza faz esfolar a cara com uma navalha. O que aconteceu entre as modelos carnudas de Renoir e os ossos expostos na passarela? Bem, por mais desumana que a resposta possa parecer, aconteceu mesmo foi o aumento do acesso à comida. Se, antes, fazer três refeições básicas era um luxo, hoje o alcance à alimentação e o estoque de suprimentos vêm-se tornando mais fáceis. Com tanta facilidade, manter a magreza excessiva tornou-se tão raro quanto manter a gordura naquela época. E, como ideais de beleza são ideais — não reais — sempre haverá de imperar aquilo que é menos acessível.
Para enxergar o “big picture” da coisa, em muitos guetos de judeus, durante a Segunda Guerra, a ração oferecida pelos alemães diariamente era de, em média, 1000 calorias, o que era uma forma de punição e sadismo. Hoje, quantas revistas não trazem a mesma meta como um prêmio a ser conquistado? A situação fica ainda mais estranha quando se percebe que isso apenas não basta: é preciso, ainda, ter traços finos, certa altura, boca carnuda e cabelos fartos. Ou seja, na maioria dos casos, é preciso nascer de novo.
É claro que todas as épocas estabeleceram seus padrões, isso não é um privilégio (às avessas, é verdade) de nossos tempos. Preencher tais exigências tem vantagens visíveis, mas principalmente invisíveis (e cruéis): as portas se abrem mais facilmente, os méritos soam mais grandiosos, a (auto)aceitação é quase sempre mais fluida…
Mas repensar suas origens faz com que as amarras se desfaçam de maneira consciente. Mais do que isso: questioná-las pode fazer com que nos atentemos a predicativos infinitamente gratificantes, sutis, necessários e profundos. Procedimento estético nenhum paga a sensação de se apaixonar por um discurso, ideia ou ação; dizer algo bem engendrado, despertando um olhar de curiosidade e desejo não é algo que se dose em calorias; conseguir sucesso em uma prova-desafio não pode ser medido na balança da beleza…
Talvez o novo propósito devesse ser a racionalização dos propósitos, numa análise mais humana da práxis. Assim, poderíamos finalmente nos medir com dosadores justos, pois que ajustados a cada um.