Isolado por Stálin no campo de Versonej, Ossip Mandelstam morreu, de fome, aos 47 anos
Durante anos, na União Soviética, dizer o nome de Óssip Mandelstam (1891-1938) publicamente era uma ofensa grave ao “guia genial dos povos”, Stálin. Aquele que o citasse podia ser preso ou, mesmo, assassinado. A polícia política fez uma varredura cultural e limpou o nome do escritor russo Mandelstam (nascido em Varsóvia) — que o político Nicolai Ivânovitch Bukhárin amava e, enquanto pôde, protegia — dos livros de história de literatura russa ou qualquer outra. Na União Soviética, “ninguém” sabia, ou podia saber, sobre o escritor Mandelstam. Era terminantemente proibido. Seus livros, como os de Boris Pasternak, não eram editados.
Mandelstam era um poeta de formação clássica, não engajado politicamente. Num dos melhores estudos da Revolução Russa de 1917, “A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa — 1891-1924” (Record, 1106 páginas), o historiador inglês Orlando Figes diz que Maksimilian Voloshin, Mandelstam e Andréi Biéli (ou Belyi) “mostravam-se ambivalentes quanto à violência revolucionária; entendiam-na como uma força justa e primitiva, mas revelavam horror diante de tamanha crueza selvagem” (página 503). Figes conta, na página 746, que Máximo Górki ajudou Mandelstam.
Há um belo livro no mercado, que poderia ter sido chamado de “O Livro Negro do Comunismo — Cultura”, mas o autor Boris Schnaiderman (um dos mais qualificados tradutores do russo), ucraniano nascido em 1917 e que morava no Brasil desde os 8 anos e morreu em 2016, não o permitiria. Por isso, o título é outro: “Os Escombros e o Mito — A Cultura e o Fim da Soviética” (Companhia das Letras, 306 páginas).
Depois de contar a história do desespero do artista russo, sobretudo daquele que não se adequava ao realismo socialista de Stálin-Jdanov, Schnaiderman escreve: “É bem conhecido o caso do grande poeta Óssip Mandelstam, que não desenvolvia nenhuma atividade política mais foi retirado em 1934 de uma casa de repouso (sofria de crises nervosas) e preso por causa de um poema sobre Stálin, em que este aparece com enormes bigodões de barata [leia o poema nesta edição, em duas versões]. O poema evidentemente não pôde ser publicado, mas o poeta leu-o para os amigos mais chegados e parece que nem chegou a anotá-lo, o que não impediu sua circulação. Depois de preso, ele teve residência forçada em Vorôniej, antes de ser mais uma vez encarcerado e morrer na enfermaria de um campo de trabalho. Pois bem, em meio às condições terríveis de sua vida em Vorôniej, sujeito a privações extremas, quando sua mulher, Nadiejda, muito doente e debilitada, decorava os versos que ele escrevia, para que não se perdessem, ele criou um poema ‘positivo’, em que fala de um tempo em que Stálin faria despertar a vida e a razão. Parece muito claro tratar-se de uma tentativa de se salvar. Mas depois, também nos ‘Cadernos de Verôniej’, aparece um poema nada canônico e bem sensual, dirigido a uma mulher morena (que não era Nadiejda; esta, aliás, em sua faina desesperada de conservar tudo o que ele escrevera, fazia questão de guardar os poemas e cartas que dirigia a outras mulheres), que profere com carinho e suavidade o ‘nome tonitruante de Stálin’. Ora, é claro que o nome neste contexto não se destinava a manifestar subserviência. Seria ‘identificação com o agressor’, numa escala desmedida? Talvez”.
No início de sua guerra contra os escritores, Stálin adotou a política de não matar, mas de isolar. Se não tinha tanto medo dos principais líderes bolcheviques, que foi matando um a um, até submeter toda a elite política e militar, Stálin tinha pânico de ver-se “mal” descrito pelos escritores, sobretudo pelos poetas. Tanto que, ao saber que Mandelstam o havia caricaturizado num poema, entrou em contato com Boris Pasternak, que admirava (sem conseguir controlar; pouco depois da perseguição a Mandelstam, chegou a vez de Pasternak, que, proibido de publicar, passou a traduzir, especialmente Shakespeare), para saber da importância do poeta. Stálin telefonou para o poeta, mais conhecido como autor do romance “Doutor Jivago”.
O diálogo entre Pasternak e Stálin é, embora também trágico, hilário. A conversa está registrada no prefácio (do tradutor e crítico literário Paulo Bezerra) do livro “O Rumor do Tempo” (Editora 34), de Mandelstam:
Stálin — Mas ele [Mandelstam] é um mestre, não é? Não é um mestre?
Pasternak — Sim, mas esse não é o problema.
Stálin — E qual é então?
Pasternak — Gostaria que tivéssemos uma entrevista. Para conversar.
Stálin — Sobre o quê?
Pasternak — Sobre a vida e a morte.
Stálin não gostou do que considerou petulância de Pasternak, um “simples” poeta, e bateu o telefone. Paulo Bezerra escreve: “Era muita petulância de um poeta grande porém mortal querer conversar sobre semelhante tema com o senhor da vida e da morte de milhões, principalmente da morte. Mas Stálin não telefonou a Pasternak por acaso: queria saber de fonte autorizada o real valor de Mandelstam na bolsa da poesia. Estava repetindo uma tradição que Marcel Detienne estudou em ‘Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica’: o poeta é um mestre da verdade, sua palavra perpetua na memória das gerações futura os feitos dos reis, podendo projetar deles uma imagem positiva ou negativa. E Stálin sabia que a opinião que as gerações futuras teriam dele dependia muito do que os poetas viessem a dizer dele. Mas tinham de ser poetas que se destacassem por aquela qualidade estética que assegura vida longa à sua obra. Por isso ele insistiu com Pasternak: ‘É um mestre’? E mestre é aquele capaz de exaltar com o mesmo virtuosismo com que desmascara, e então os versos que exaltam superam e apagam os que desmascaram. Portanto, em vez de fuzilar logo Mandelstam, era mais inteligente levá-lo a usar o seu grande talento para engrandecer a ele, Stálin. Manter o poeta vivo e não mandá-lo para um campo de trabalhos forçados, mas para um lugarejo isolado e depois para a cidade de Vorôniej, era preservá-lo na condição de ‘devedor’”.
Mandelstam entendeu o recado de Stálin: não tendo sido assassinado, deveria agradecer a gentileza. Escreveu uma “Ode” a Stálin, mas sem muita qualidade. “Nome glorioso… para a honra e o amor, o ar e o aço”, mentiu Mandelstam. “Mais verdadeiro que a verdade”, acrescentou. “Talvez Mandelstam esperasse com isso salvar a própria vida. Mas em vão: acabou novamente preso e morrendo na enfermaria de um campo de trabalhos forçados, vítima da fúria de um período funesto da história do seu ‘século-fera’”, relata Paulo Bezerra. Na introdução de “Guarda Minha Fala Para Sempre”, Nina Guerra diz que Mandelstam “morreu de fome [em dezembro de 1948, aos 47 anos], de distrofia. Não existe o túmulo dele”.
Poeta, prosador e crítico
Mandelstam escreveu “600 poesias, ensaios autobiográficos e filosóficos, artigos de crítica literária e traduções poéticas (Mallarmé, Racine, Barbier, G. Duhamel, Jules Romain, a “Chanson de Roland”, Petrarca, entre outros)”. (Paulo Bezerra conta que Mandelstam lia intensamente a poesia de Dante, François Villon e André Chénier.) Mandelstam é um poeta à parte, autônomo, por isso é difícil filiá-lo a uma corrente. “Em 1911 foi criado um grupo literário em que entraram, entre outros, Nikolai Gumiliov, Anna Akhmátova, Serguei Gorodetski e Óssip Mandelstam. Um ano depois, a nova corrente literária foi batizada de ‘acmeísmo’ (do grego acme — ponta aguda). A nova corrente tornou-se uma superação lógica do simbolismo. Voltar à terra: da eternidade para a história, da feminidade eterna para o princípio masculino, dos espíritos incorpóreos, sejam anjos ou diabos, para a força animal, do além para o quotidiano, da ideia para as manifestações concretas”. A crítica de Mandelstam ao simbolismo: “O simbolismo russo gritou tanto e tão alto sobre o indizível, que o indizível começou a circular como papel-moeda”. O primeiro livro de Mandelstam, “Kamen” (Pedra), foi editado em 1913. “É muito marcante a imagem da pedra na poesia mandelstiana”, avalia Nina Guerra.
Em 1918, escreve a ode “Trevas da Liberdade”, na qual, segundo Nina Guerra, “introduz um novo elemento na poesia russa: uma atitude ativa para com o mundo independente da posição política, um imperativo ético de ter a ‘coragem do homem’, que para ele é maior que a ‘coragem do cidadão’”. “Glorifiquemos, irmãos, as trevas da liberdade — O grande ano das trevas. Glorifiquemos o fardo sombrio do poder, Seu jugo insuportável”, escreveu Mandelstam. Era uma forma, conforme nota Nina Guerra, de glorificar o inglório. “Mandelstam, como poeta e como pessoa, era contra qualquer derramamento de sangue. E não em teoria: em 1918, em Moscou, o socialista-revolucionário Bliumkin gabava-se-lhe de que tinha nas mãos a vida de muitas pessoas; Mandelstam, indignado, arrebatou-lhe das mãos as listas dos condenados ao fuzilamento e rasgou-as ali mesmo.”
Quase tudo do que se preservou de Mandelstam deve-se à sua mulher, Nadiejda. Ela guardou o que foi possível, até poemas de amor para outras mulheres. Deve-se a essa mulher sagaz e desprendida a “salvação”, em grande parte, da poética de Mandelstam. Certa vez, o poeta escreveu para sua mulher: “Baralharam-me, sinto-me como na prisão, não há luz. Quero limpar-me das mentiras e não sou capaz, quero lavar-me da sujidade e não posso”. É o que as ditaduras fazem aos inocentes, mesmo com aqueles que, poetas, têm o dom da palavra. Os ditadores não perdoam a rebeldia da palavra — encarceram, humilham e matam.
O gigante Stálin, no enfrentamento com o julgamento histórico, hoje é anão. Mandelstam, que era pequeno (até no físico), agora é um gigante. E, quanto mais passa o tempo, Stálin vai ficando ainda menor e Mandelstam, cada vez maior. Os ditadores, que devoram os homens que resistem, acabam por serem devorados pela história.
O poema de Óssip Mandelstam que provocou sua prisão em 1934
(A “Revista Bula” publica duas traduções — a brasileira e a portuguesa)
Vivemos sem sentir o país sob os pés,
Nem a dez passos ouvimos o que se diz,
E quando chegamos enfim à meia fala
O montanheiro do Krémlin lá vem à baila.
Dedos gordurosos como vérmina gorda.
Riem-se-lhe os bigodes de barata,
Reluzem-lhe os canos da bota alta.
À volta a escumalha — guias de fino pescoço —
Nas vênias da semigente ele brinca com gozo.
Um assobia, o outro geme, aquele mia,
Só ele trata por tu, escolhe companhia.
Como ferraduras, lei ‘trás de lei ele oferta,
Em cheio na virilha, olho e sobrolho e testa.
Cada morte que faz — crime malino
E o peitaço tem amplo, o ossetino.
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
nossos discursos não são ouvidos a 10 passos de distância,
Mas onde há apenas uma meia-conversa
sempre nos recordamos do montanhês do Kremlin.
Seus grossos dedos são gordos como vermes,
e suas palavras seguras como fios de mundo.
Riem seus bigodes de escaravelho,
e brilham suas polainas.
Rodeia-o um bando de chefetes submissos
E ele se diverte com a servidão dos semi-homens.
Há quem assovia, quem geme, quem choraminga
se somente ele fala ou aponta o dedo.
Como ferraduras ele forja um ukaz após outro
com os quais de um ele ferra a virilha, de outro a testa,
de mais outro as sobrancelhas, de outro ainda os olhos.
Não há execução que não seja para ele uma festa.
Tradução: Luís Mário Gazzaneo
Ditador dos bigodes de barata não gostou
A tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, feita a partir do original russo, está no livro “Guarda Minha Fala para Sempre”, de Óssip Mandelstam, publicado pela editora portuguesa Assírio & Alvim. A “Revista Bula” mantém a acentuação portuguesa (Krémlin, vénia ) e a estrutura da versão. A tradução de Luís Mário Gazzaneo está no livro “Os Últimos Anos de Bukhárin”, de Roy Medvedev, Editora Civilização Brasileira (página 73). Ela foi feita a partir do italiano.
O poema é de 1933, quando Stálin já era senhor absoluto da União Soviética. Mas as matanças dos “inimigos” pessoais do ditador começaram no ano seguinte. Esses adversários eram tratados (e apresentados à população) como inimigos do socialismo, da revolução, da União Soviética. Eram “terroristas” e “trotskistas”. Mandelstam teve coragem de desafiar Stálin quando os políticos e muitos escritores já buscavam a conciliação com o objetivo de sobreviver política e, sobretudo, fisicamente. Mandelstam fez o desafio supremo ao dizer que o bigode de Stálin era de barata e seus dedos gordos foram comparados a vermes. É um retrato sem retoque do ditador georgiano, Stálin, dos ditadores em geral e da submissão que os regimes de exceção produzem. Segundo Roy Medvedev, Mandelstam não escreveu os versos. Ele limitava-se a recitá-los “em várias ocasiões a alguns amigos”. A transcrição teria sido feita por um stalinista com o objetivo de indispor Mandelstam com Stálin. Como era recitado em vários lugares, com entonações e palavras diferentes, há outras versões do poema.