Você chega em casa e liga a tevê. Enquanto seu programa está no intervalo, vai navegando aleatoriamente pela internet do laptop e clica em um vídeo. Enquanto ele carrega, você atualiza o Instagram e assiste a alguns stories, mas logo é distraído por uma mensagem urgente no Whatsapp. Antes que termine de respondê-la, chega um e-mail do seu chefe (aquele puto trabalha até as 22h!). De repente, o programa da TV acaba e você sequer sabe sobre o que ele falou, as mensagens do Whatsapp já estão quase na casa das centenas, 102 pessoas já postaram novos stories e isso tudo enquanto você respondia, com a testa molhada de suor, ao e-mail do chefe.
Com as devidas adaptações, raramente alguém não passou por algo similar. Estamos afogados em possibilidades: as portas e janelas já não são mais suficientes, é preciso penetrar as entranhas e os poros da informação e dividi-la com a plateia, ainda que sua colaboração se restrinja ao mais inútil prato de miojo.
A Era Digital traz consigo uma série de deslumbres. Conceitos modernos, como Aldeia Global e democratização da informação, dão o frágil sentimento de que estamos evoluindo. Mas a popularização de dados vai muito além de seu acesso e faz emergirem conceitos preocupantes, como a tal da pós-verdade, eleita como a palavra do ano pela Universidade de Oxford. É uma loucura isso de sermos pós-verdadeiros, porque se exprime uma contradição: em plena era da informação, tem sido cada vez menor a preocupação com a veracidade, que vem cedendo rápido espaço à mera subjetividade. Somos todos produtores de conteúdo, ainda que poucos tenham habilidade, competência ou conhecimento para tamanha responsabilidade. Qualquer um pode criar uma notícia, transformá-la indiscriminadamente num post bombástico e disseminar um hoax maluco por aí. Não se assuste se sua tia compartilhar indignada o “fato” de que um menino se tornou um sanduíche a olhos vistos no Congo, ou que estudiosos comprovaram que comer asfalto faz bem para quem tem diabetes, ou que Ivete Sangalo é, na verdade, um android.
Como se não bastasse, as informações em excesso — mesmo as inverídicas — parecem nos tornar menos sensíveis. É tanta desgraceira, que a sensação de alarme e condoimento não dura mais que um segundo. Mergulhamos num estado de torpor em que uma notícia de linchamento coletivo faz o mesmo efeito que a de uma propaganda de iogurte, e qualquer esboço de nó no estômago se desfaz com um vídeo fofo de gatinhos serelepes. A digitalização da Era parece ter digitalizado nossas almas.
Até mesmo as conversas de bar perderam muito da bossa. Era uma delícia quando ninguém à mesa se lembrava do nome de um filme, e então ficávamos todos espremendo o cérebro para alcançar uma pista. Hoje, ao primeiro lampejo incerto, alguém saca o Google, mestre-de-todo-o-conhecimento-amém, e já decreta a verdade — ou pós-verdade? Já nem sei mais — acabando com o suspense que conferiria alguma magia ao encontro de amigos.
Nada disso, no entanto, é uma conclamação pelo repúdio ao que é tecnológico ou mesmo à informação em excesso. A culpa não é dela, coitada, toda cheia das boas intenções. O negócio é o descompasso entre cabeça e espírito, objetivo e subjetivo, ser e não ser. Talvez a velocidade de nossos cérebros esteja muito além do que comportam nossos corações.