Filme da Lava Jato não prende nem Lula nem a atenção do espectador

Filme da Lava Jato não prende nem Lula nem a atenção do espectador

Lula é uma figura caricata. Calma, calma, meu amiguinho vermelho, antes que comece a gritar “golpista” (não sou), “elitista” (sou), “machista” (não sou), “elite branca” (sou) e coisas do tipo, lembre-se que ser caricato muitas vezes é o segredo do sucesso. Se por um lado FHC e Trump são caricatos, por outro Sílvio Santos e Ferreira Gullar também. Ao mesmo tempo, Alckmin é tão insosso que talvez lhe falte justamente alguns traços de exagero. O fato é que ser facilmente reconhecível sendo imitado por um comediante de programa de auditório é sinal de carisma. Então, relaxa e goza, e antes de costurar meu nome na boca do sapo, xingar muito no Twitter ou acender sua tocha tente entender primeiro qual é o ponto.

Recomeçando, Lula é uma figura caricata. A voz, a dicção, os modos, o gestual, o vocabulário, o senso de humor, a lábia de vendedor de carro usado, a personalidade bonachona. Inegavelmente, goste dele ou não, o conjunto da obra é exuberante. Eis a questão: como representar Lula de maneira séria e convincente numa obra de ficção, sem ficar bidimensional, sem parecer um personagem da “Praça é Nossa”, sem cair na caricatura da caricatura?

Ary Fontoura
o Lula de Ary Fontoura não é o Lula que todos nós conhecemos. Ele é chamado de Lula, tem o nome de Lula, faz coisas que Lula fez, diz coisas que Lula disse, mas não é possível reconhecê-lo como Lula

Esse foi o maior desafio do filme “Polícia Federal: A Lei é Para Todos”, dirigido por Marcelo Antunez, significativamente lançado nacionalmente no dia 7 de setembro de 2017. O objetivo do filme é dramatizar os esforços de uma equipe da Polícia Federal durante as primeiras fases da Operação Lava Jato, a maior operação anticorrupção da história do Brasil e, possivelmente, do mundo. Não pretendo analisar o filme em si. Destaco apenas que acredito que o formato ideal para tal narrativa seria o de minissérie, tamanha a quantidade de personagens envolvidos, surpresas e reviravoltas. Em um longa-metragem de aproximadamente duas horas, ainda que se anuncie como a primeira parte de uma trilogia, a história ficou nitidamente corrida. Mesmo assim, em linhas gerais, a despeito do roteiro esquemático, diálogos artificiais e direção irregular, o resultado final é relativamente bem-sucedido no que pretende ser: um thriller policial sem grandes voos intelectuais ou elaboradas reflexões políticas. Julgá-lo para além disso, como grande parte da imprensa especializada está fazendo, certamente movida por simpatias ideológicas, é colocá-lo muito acima de suas pretensões artísticas. “Polícia Federal: A Lei é Para Todos” não quer fazer sociologia como “Cidade de Deus” ou “Tropa de Elite”, quer apenas fazer dinheiro. A filmografia do diretor, na qual se destacam exemplos de entretenimento descartáveis como “Qualquer Gato Vira-latas 2” e “Até que a Sorte nos Separe 3”, corrobora isso. Tampouco me parece crível que Marcelo Antunez considera que “Polícia Federal: A Lei é Para Todos” seja uma tentativa de fazer seu “Cidadão Kane” particular.

O problema é que o cidadão Lula é um dos personagens do filme. Mais: é o vilão do filme. Esse entrecho dramático por si só carrega potencial altamente explosivo. Esse é meu ponto.

Em “Policia Federal: A Lei é Para Todos” Lula é interpretado por Ary Fontoura. Ninguém coloca em dúvida o talento e a seriedade do veterano ator, marcante na pele de tipos inesquecíveis como o prefeito Florindo Abelha, na novela “Roque Santeiro”, e Nonô Correia, de “Amor com Amor se Paga”. Mas Ary Fontoura foi convincente ao interpretar Lula? Infelizmente, a resposta é não.

Os motivos são variados. O primeiro é uma questão de escalação. Fontoura não se parece fisicamente com Lula, nem mesmo vagamente. Em se tratando de um político amplamente reconhecível por sua fisicalidade, certa semelhança seria conveniente. Outro aspecto importante se refere a idade. Ary Fontoura, nascido em 1933, é um homem de 84 anos. Lula, nascido em 1945, está com 71 anos. Portanto, uma diferença de 13 anos. Nessa etapa da vida, 13 anos são um abismo em termos de vigor físico. Por mais que Lula tenha se desgastado à olhos vistos nos últimos tempos, ainda não se parece com um octogenário.

Me parece que promover esse distanciamento foi intencional, uma vez que a produção sequer se preocupou em esconder por meio de truques de câmera as mãos de Ary Fontoura, ocultando seus dedos intactos. O mesmo se pode dizer em relação à atuação vocal do ator, que evitou imitar a famosa “língua presa” do ex-presidente. Talvez essa opção interpretativa em particular tenha sido feliz, uma vez que facilmente poderia resvalar no ridículo, sobretudo vinda de um interprete tão conhecido como Ary Fontoura. Mas também acaba por denunciar uma inconsistência grave do filme, que em determinadas cenas reproduz áudios reais do ex-presidente, captados em grampos telefônicos. Ou seja, o Lula do filme fala com duas vozes, dois sotaques, suas dicções. Seja como for, esses detalhes reforçam o ponto central dessa reflexão desocupada: é possível interpretar seriamente uma figura caricata na origem?

O fato é que o Lula de Ary Fontoura não é o Lula que todos nós conhecemos. Ele é chamado de Lula, tem o nome de Lula, faz coisas que Lula fez, diz coisas que Lula disse, mas não é possível reconhecê-lo como Lula. É o Lula de um universo paralelo. Somente a Teoria das Cordas para explicar.

Marcelo Antunez
Marcelo Antunez: “Polícia Federal: A Lei é Para Todos” não quer fazer sociologia como “Cidade de Deus” ou “Tropa de Elite”, quer apenas fazer dinheiro. A filmografia do diretor, na qual se destacam exemplos de entretenimento descartáveis corrobora isso

Obviamente, a essa altura do processo de investigação e divulgação dos fatos, somente pessoas muito crédulas ou má intencionadas ainda defendem a tese da inocência de Lula e seus companheiros, sobretudo após a condenação em primeira instância e do depoimento de Antonio Palocci. Mesmo assim, o bom cinema exige que se trate essas questões com certa sutileza, sob o risco de se fazer proselitismo moralista. Nesse sentido, o tom marcadamente raivoso, violento, reativo e sem nuances da interpretação de Ary Fontoura é bastante problemático. Sabidamente o ex-presidente não é conhecido por sua elegância e refinamento, porém a exagerada rispidez com que Ary Fontoura impregnou aos diálogos de Lula ao receber os agentes federais que iriam conduzi-lo coercitivamente para depor não parecem críveis. Ary Fontoura transformou Lula em um vilão de filmes da Sessão da Tarde, retirou qualquer dubiedade de sua performance, tornando-a francamente bidimensional. Embora as imagens gravadas dessa ação policial não tenham sido disponibilizadas, é possível tecer comparações com a atitude arredia, desconfortável e na defensiva de Lula quando do primeiro depoimento ao juiz Sérgio Moro em Curitiba. O tom é completamente diferente.

Em entrevistas de divulgação do filme, Ary Fontoura declarou que votou em Lula em duas ocasiões, que realmente acreditou em suas propostas para o Brasil, e que não tinha a intenção de retratá-lo como um vilão cartunesco. Se é esse o caso, cometeu um sério erro de composição. Erro que, imagino, poderia ter sido podado pelo diretor, se tivesse dado ao ator indicações cênicas mais precisas. Mas esse é, talvez, a maior falha do filme, sua incapacidade de aprofundar seus personagens. Com exceção do delegado Ivan, interpretado com maestria por Antonio Calloni, todos os agentes da lei que surgem em cena carecem de humanidade, são heróis de quadrinhos, puros e abnegados. Arquétipos sem profundidade: temos o galã vigoroso, a bela inteligente e mandona, o incorruptível homem de família, o nerd obstinado e por aí vai. No registro inverso, o mesmo acontece com os doleiros, empreiteiros, políticos e burocratas presos pela Operação Lava Jato. São todos sórdidos, inescrupulosos e terríveis vilões de desenho animado. Do mesmo modo, o lado do “mal” tem sua exceção na figura de Alberto Youssef, interpretado por Roberto Birindelli com sarcasmo e charme de bom malandro.

Haveria outras opções que não Ary Fontoura? Com todo respeito aos esforços de Fontoura, ouso citar o nome de Antonio Pedro, que seria fisicamente mais convincente. Ou quem sabe José de Abreu, não pelo físico ou pela voz, mas sendo um defensor intransigente de Lula, talvez trouxesse certa dubiedade ao personagem, enriquecendo sua presença no filme.

Uma possibilidade interessante seria trazer de volta Rui Ricardo Dias, que interpretou o ex-presidente no filme “Lula, Filho do Brasil” (2009), dirigido por Fábio Barreto. O filme em si é fraco, variando entre apologia tosca, drama histórico descerebrado e novela das oito, mas Rui Ricardo Dias saiu-se bem em sua composição do jovem Lula, no começo da carreira política. É verdade que foi mal dirigido por Fábio Barreto, tanto que em algumas cenas fazia a “língua presa”, em outras se esquecia desse detalhe, mas de modo geral entregou um trabalho com potencial para ser ampliado, aprofundado. Talvez essa fosse a melhor oportunidade para isso. Teria que suplantar o obstáculo de ter apenas 39 anos atualmente, mas não é nada que uma boa maquiagem não pudesse resolver.

Outra opção, e talvez a melhor, seria contratar algum experiente, mas pouco conhecido ator de teatro. Certamente há alguns no Brasil que atenderiam aos requisitos físicos e dramáticos para assumir personagem tão complexo. Talvez vindo de alguém neutro, um ator não rotulado por seus registros cênicos anteriores, uma interpretação caricata não parecesse caricata quando comparada ao original.

Resta saber se esse “alguém” aceitaria assumir o encargo de interpretar Lula em um filme que ficou marcado, mesmo antes de ser lançado, como um libelo golpista, elitista, machista e elite branca contra o ex-presidente da estrela vermelha. É preciso reconhecer a coragem de Ary Fontoura. Não foi fácil fechar o elenco da produção. Espalhou-se pela internet a notícia de muitas recusas. Vários artistas se recusaram a ligar seu nome ao “filme tucano”. Um exemplo, embora possa ser apócrifo, tornou-se bastante conhecido. O primeiro ator cotado para interpretar o juiz Sérgio Moro (papel que acabou ficando com o competente Marcelo Serrado) recusou indignado ao convite. Alegou que “não interpreta canalhas”. A ironia da situação é que até então seus personagens mais conhecidos são um policial torturador e um famoso traficante de drogas.

Aparentemente, Ary Fontoura é menos seletivo na escolha de seus papéis.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.