Amei algumas mulheres na vida. Sendo sincero, não acredito na bitolada história de que “amor verdadeiro só há um”; tudo depende, creio, de fatores que não controlamos muito, momento, disponibilidade, atração, outras tantas coisas, de modo que, com sorte e alguma persistência, o raio pode cair mais de uma vez no mesmo lugar. Às vezes dá certo; costuma, porém, falhar. É coisa rara, portanto; contudo, ele eventualmente surge onde nem sequer o havíamos espreitado, e esse sentimento inesperado vale por mil vidas.
Pois ele veio mais uma vez a mim. Veio devagar, mas veio. Como quem não queria nada, mas veio. No início, cuidadoso; depois, desbragado; já no fim, extasiado de si mesmo. Chegou e ocupou os espaços de uma vida metódica, então descrente nas possibilidades do amor e já cheia de cicatrizes de lutas passadas. Foi imenso e talvez por isso eu não pude amar com a mesma intensidade durante o tempo inteiro — eu não sobreviveria. E tudo isso tendo uma mensageira de design perfeito cujo molde se perdeu num escaninho qualquer dos Céus ou do Destino, bem sei, e jamais se repetirá.
Ocorre que o amor que dá certo traz em si a sua própria semente de destruição: acostumamo-nos com ele justamente porque as engrenagens se encaixam. O todo caleidoscópico de pequenas peças passa a fazer sentido, ficamos de certo modo anestesiados com a maquinaria em perfeito funcionamento, donde o amor, satisfeito, domado, acalentado, parece então acabar. Costuma ser falso alarme: estará apenas hibernando para reviver com o mais leve toque, com a menor centelha. O amor acaba para renascer em todos os lugares, como queria Paulo Mendes Campos, ou mesmo para fechar-se em si mesmo, solitário e por muito tempo, à espera do sopro que o trará de volta. É como naquela história de um professor qualquer que fora preso por suas opiniões políticas; libertado depois de muitos anos de masmorra, retomou assim as suas aulas: “Dizíamos ontem…”. Quem ama almeja ser esse professor.
Muitas coisas ajudam a criar os tristes períodos de hibernação. Nós homens, por exemplo, costumamos tentar não nos afetar tanto pelo amor, mas isso é algo cultural da nossa época; na Renascença, um ontem em termos históricos, render-se a ele era parte da masculinidade. Os gregos, aliás, já sabiam que alguém apaixonado vê melhor a si mesmo e, com o prisma do ser amado, compreende o mundo ao seu redor (está lá no “Simpósio” de Platão). Claro, amar também requer um complexo gerenciamento, pois que é um balé de sutilezas, um pas de deux em que entram vivências e intuições. É feito de sístoles e diástoles de distância e aproximação. Sobretudo, é preciso não banalizar o amor — tantas pessoas declaram estar amando nos primeiros encontros que ele até parece ser a nova gripe espanhola —, mas tampouco ele pode se tornar mais complicado do que já é por natureza. Requer paciência, desvelo, independência mais que dependência (“É preciso haver dois antes de haver um”, escreveu Ralph Waldo Emerson sobre o amor), certo pragmatismo e um tanto de utopia, além de um olho fechado e outro aberto. E tudo isso, bem sabemos, é difícil de juntar, amálgama improvável de rara aparição, daí porque tantos ainda confundam companhia ou desejo carnal com amor. Mais cedo do que tarde, porém, a ferida sempre se abre. Seria o amor a tragédia e a bênção de todas as épocas? Talvez. Ainda assim, amar pode fazer as coisas ter sentido, eu diria, e não nos cegar, como se diz erroneamente e com certa frequência. O chavão se aplica: amar é ser.
Por tudo isso, sendo o amor uma aventura de alto risco, amar é quase um ato de heroísmo. É coisa volátil; pior, é coisa sublime ao mesmo tempo em que é extremamente danoso. Lembremos: para Ovídio, aquele romano que sabia desses temas, deve-se amar como se luta uma guerra. Abelardo e Heloísa, Frida Kahlo e Diego Rivera, Marco Antônio e Cleópatra, Elizabeth Taylor e Richard Burton, Gertrude Stein e Alice B. Toklas — os grandes amores não tinham grade de proteção, airbag e freio antiderrapante. Eram forças da natureza, choviam e trovejavam, morreram porque se esgotaram em si mesmos, de tão grandes. É isto: os grandes amores têm direito ao fracasso; afinal, “o amor é garoto cigano que não conhece qualquer lei”, já se cantou. Sim, Cupido é um sujeito do contra e irritante. Melindroso.
Depois de algo assim, há somente o vácuo. É onde estou no momento (não riam: todas as cartas de amor são ridículas, como queria Fernando Pessoa, justamente porque todos os grandes amores também o são). No meu caso, confesso, eu quis seguir na trilha do amor que me chegou sem aviso prévio. Houve rejeição; paciência. Ando fechado em mim mesmo, remoendo culpas minhas e alheias, pensando sobre erros, observando os doloridos movimentos do outro lado desta equação. Mas… Fui feliz e espero ter proporcionado alguma felicidade. Sei que do lado de lá será dito que fui isto ou aquilo, virão aleivosias, mas tenho o alento de saber que não me neguei ao amor por picuinhas e coisas sem importância. No fundo, amor fracassado é, se durou, também vitorioso. Ou antes: se durou, não é amor fracassado. Mais: esse amor agora perdido trouxe um pouco de dignidade a mim, retirou-me de cotidianas tribulações para me jogar dentro de um mundo mais coerente. Sei que sou de trato difícil, mas, diabos, não é verdade que “amamos não por causa, mas apesar de?” Fica, claro, certo travo de “quero mais”, de coisa interrompida antes do final. Fica, sobretudo, alguma raiva por não mais poder participar de um futuro que se planejou comum. E há coisas mais sutis, ou mesmo mais bobas, como uma melancolia que me turva os dias pelo fato de que não pude vê-la, com 12 ou 13 anos, correndo pelas ruas da sua cidade do interior (as garotas eram “sapecas” ou “levadas”, diziam os pais; ela, com certeza, deve ter sido — ainda é.). Sentimento de posse de um passado que não se conheceu — Freud explica? Esta nostalgia daquilo que não vi dói, profunda e irreparavelmente, em algum lugar do meu peito. E existe ainda em mim certa preguiça de sofrer de novo dores infelizmente já conhecidas. “Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será.”
“Amei-te certa vez, Átis”, escreveu a poeta grega Safo. Pois jogo ao vento esse verso, com destinatária certa e com a vaga esperança de que chegue ao destino. Não com o intuito de alguma tola tentativa de reconquista, mas como que para dizer que foi bom, foi uma vertigem, foi mesmo uma florada na aridez em que eu vivia.
Foi tudo isso e é também uma marca feita em mim com ferro em brasa. “Entretanto eu caminho, melancólico e vertical”, posso dizer, e sei que muito tempo levarei para me decidir sobre tantas coisas novas que me afligem, mas hoje, aqui, agora, nesta aridez que retornou, apenas me pergunto: “Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces?” É provável que sim, é sempre provável, para mim e para você que me lê, sei desde já a resposta e tristemente antecipo o dia em que poderei dizer, sem que o coração pareça cavalo amalucado, as palavras finais desta história que foi tudo e agora caminha para o seu destino inexorável de ser nada: “But above all, I wish you love”.
Pintura de Jack Vettriano