Há dias em que dá vontade de comer o mundo com uma colher. Bebê-lo fumegante, queimando o esôfago, até que finalmente proteja o estômago da fome de tudo. Essa sensação não costuma pedir licença: às vezes surge ali, em meio à rotina manhosa, em que tudo repousa no devido lugar, e cresce enquanto o sangue bombeia inconsequente nos ouvidos. Não há explicação, tampouco escapatória. Há dias em que se quer virar do avesso, provar todas as comidas, atravessar todos os países, puxar os convivas pela gola e dizer de uma só vez as verdades oprimidas pelo manual da convivência.
Nesses momentos, pode-se dar ouvido à voz ou tentar empurrá-la para a gaveta da surdez. A voz. Fui apresentada a ela pelas inquietas letras de Erica Jong: “Que voz era aquela que continuava a chamar-me de covarde, instando-me a queimar minhas pontes, a engolir o veneno de um só gole em vez de gota em gota, a descer ao fundo de meu medo e ver se eu conseguia me puxar para cima?”, perguntou a escritora sobre a força visceral que a empurrava para os céus e infernos que conhecera ao longo da vida.
A voz. Nada mais presunçoso do que dar ao desconhecido um artigo definido em busca de intimidade. Não uma voz qualquer — que pode ser, sabe-se lá!, um sopro de espírito, um delírio, ou a insanidade finalmente desmascarada — mas “a” voz. Como se, conhecida, tivesse morado ali todo o tempo, sufocada por medo e rotina, até que a coragem — ou a ebulição — a tivesse alforriado. Como uma “pancada de fome”, apelidara Jong, “como se meu estômago acreditasse ser um coração”.
A voz pode impelir a alma para todas as direções. Faz aflorar talentos, destruir relações, enterrar mentiras, renascer verdades, conceber descobertas, reinventar a roda, destruir teorias… É a voz que move o mundo e chacoalha o eletrocardiograma da humanidade.
Há dias em que dá vontade de comer o mundo com uma colher, e essa fome de mundo é uma confissão da consciência. Resignada, ela assume: “somos incompletos”. Impreenchíveis, eis o que somos, verdadeiros ninfomaníacos de corpo, alma e cérebro. E seremos sempre algozes do coração ao lhe negar os ares novos que — jamais saberemos se não os respirarmos — fazem derreter ou congelar.