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Uma lista com 11 músicas importantes da MPB é algo impossível de se fazer, mesmo porque existem as que são importantes e necessárias, as que são necessárias e não são importantes, as que são importantes e não são necessárias…
A música, por si mesma, é fruto da junção da melodia com o ritmo e a harmonia. Já a letra da música tem que ser confeccionada, adaptando-se à estrutura musical, não sendo, portanto, um poema cantado. Dicotomizar a representatividade e o valor do poeta e do letrista é no mínimo um purismo estrutural da língua que uns poucos ainda conservam.
A MPB é aquinhoada com grandes compositores, muitos deles letristas também, e por que não dizer, poetas. Temos músicas riquíssimas em poesia e melodia, com harmonias simples ou até eruditas, complementadas por letras que são verdadeiras obras de arte.
Classificar somente 11 músicas, neste universo melodioso e caudaloso do cancioneiro popular brasileiro, é tarefa laboriosa e inglória. Tanto é verdade que proponho aqui que continuemos com a listagem sem delimitá-la, procurando sempre mostrar a dualidade entre importância e necessidade no tocante à MPB.
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Na década de 30 do século passado, a música brasileira foi tomada de assalto pelos sambas-exaltação. Era um ufanismo exagerado, em que se propagavam aos quatro cantos as belezas e a grandeza do Brasil, sem que os fatos políticos interviessem nos resultados. Eis que um mineiro de Ubá, Ary Barroso, que se autodenominava “um pianeiro” (pois não havia estudado piano), compôs aquele que seria o segundo Hino Nacional: “Aquarela do Brasil”. A canção, tema do personagem Zé Carioca no desenho animado “Alô, Amigos”, de Walt Disney, foi responsável por alavancar e difundir a musicalidade brasileira na América do Norte e, consequentemente, no resto mundo. Sua melhor gravação encontra-se no álbum “Brasil”, com João Gilberto, Caetano e Gil.
“Bastidores”, a música que Chico Buarque fez para Cristina, sua irmã, tem uma importância incomum na plêiade de toda sua musicografia. Ela trouxe de volta à cena ninguém menos que Cauby Peixoto, que estava no ostracismo desde o raiar da Bossa Nova. Cauby, com sua interpretação peculiar, inimitável, encarna com perfeição a cantora de cabaré frustrada com a perda de seu amor e que, se valendo de drogas e álcool, volta ao palco para desempenhar a melhor de suas interpretações. A melhor gravação é exatamente essa, com o indefectível Cauby.
Gil quebrou todos os paradigmas de arranjos musicais na MPB quando se apresentou com uma orquestra, uma banda de rock — Os Mutantes — e os elementos sonoros baianos berimbau e roda de capoeira, num arranjo inusitado de Rogério Duprat para a não menos insólita composição autoral “Domingo no Parque”. Criou-se, naquele momento, o sincretismo musical que balizou a “Tropicália”, movimento musical surgido em meados da década de 1960 e que teve em Gil um de seus protagonistas. A melodia, bem elaborada, segue o ritmo da capoeira fazendo com que tudo gire em torno de um triângulo amoroso (João, José e Juliana) num parque de diversões durante um final de semana. A história acaba em tragédia, mas a música ficou para sempre. Outro marco musical que “Domingo no Parque” trouxe foi a inserção da guitarra na MPB, fato polêmico que na época gerou discussões de artistas de todos os matizes.
Música-tema do filme de Marcel Camus, “Orfeu Negro”, “Manhã de Carnaval” foi composta por Luíz Bonfá e Antônio Maria, e se tornou uma das músicas mais importantes da história da MPB. Está inserida também no Jazz americano, que a considera de uma relevância singular por ter feito a ponte entre ele e a bossa nova no final da década de 1950. É parte integrante do repertório de muitos artistas internacionais, e figura entre as dez músicas mais tocadas no mundo, segundo o “Guinness Book”. O violonista e expert em música Luiz Bonfá, que não conseguiu em sua terra pátria a glória tão almejada, foi alcançá-la nos Estados Unidos, onde além de compositor tornou-se arranjador, interessando-se também por sonoridades eletrônicas. Seu parceiro, o jornalista, produtor e boêmio Antônio Maria, era também letrista de músicas tristes e melancólicas. Parecia impossível que a colaboração entre estes dois compositores resultasse num sucesso tão atemporal, que influenciou e ainda influencia músicos em todo o mundo.
“Sabiá” tem uma melodia com características de música de câmara, traço indelével de todas as composições de Tom Jobim. Composta especialmente para a soprano Maria Lúcia Godoy, foi inscrita no Festival Internacional da Canção porque o Maestro Soberano não queria participar como jurado. Tom convidou Chico Buarque para escrever a letra, e a partir de então a canção passou a chamar-se “Sabiá” (o nome original era “Gávea”). Muitos foram os analistas da letra, e poucos os que buscaram a verdade sobre ela. Chico se inspirou em seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, que havia escrito: “Somos uns desterrados em nossa própria terra”. De Gonçalves Dias, somente a lembrança das palmeiras e do sabiá. Em sua apresentação no Maracanãzinho, Chico recebeu uma das maiores vaias da história da música ao derrotar uma música de protesto, que encarnava os anseios da juventude da época. Com vaia e tudo, Sabiá foi a grande vencedora do Festival Internacional da Canção — e com louvor, diga-se de passagem, pois o casamento da letra com a belíssima melodia foi realmente perfeito.
“Beatriz” é uma das mais belas composições da história da MPB. Carrega consigo um lirismo típico das composições de câmara e um poema cuja análise deixo ao encargo do próprio Chico Buarque: “Quando eu estava fazendo as letras para as músicas de Edu Lobo, no balé ‘O Grande Circo Místico’, havia um tema para a equilibrista que eu não conseguia solucionar. No poema de Jorge de Lima, a equilibrista se chamava Agnes, que aliás é um belo nome, mas a letra não saía. Então troquei Agnes por Beatriz, transformei a equilibrista em atriz e coloquei-a no sétimo céu, em homenagem à Beatrice Portinari, de Dante. Beatriz carregando minhas obsessões”. Em: “Será que é divina, será que é comédia, a vida da atriz”, a alusão a Dante é inexorável. Portanto, não há que se falar em divisão entre o real e/ou imaginário no contexto do poema, já que, como em tudo na vida, a finitude sela a história.
Certa feita, Manuel Bandeira escreveu: “Se se fizesse aqui um concurso (…) para apurar qual o verso mais bonito de nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes: ‘tu pisavas nos astros distraída…’”. O Orestes a quem Bandeira se referiu era Orestes Barbosa, parceiro musical de Sílvio Caldas, com quem criou “Chão de Estrelas”, esta pérola do cancioneiro popular brasileiro. Na verdade, a seresta é um gênero musical que foi sendo aos poucos abandonado pelos ouvintes, e depois pelos compositores, mesmo porque a velocidade da vida em si tornou-o muito lento e arrastado para os dias atuais. A seresta é uma música urbana que virou quase sinônimo de saudosismo, mas que foi trilha sonora desta urbanização pela qual estamos passando, e nem por isso deixou de ser melodiosa e agradável aos ouvidos apurados. “Chão de Estrelas” é o arquétipo do gênero e, por certo, uma canção seminal no cânone da MPB.
“Pois É, Pra Quê?” traduz de forma ímpar o sentimento urbano, ora ingênuo, ora devasso e também saudoso, valendo-se da emoção simples e de assuntos banais para traçar um painel profundo do cotidiano brasileiro. Como se estivesse descrevendo a leitura de um periódico, Sidney Miller expressa nessa música o momento vivido pelo brasileiro e pelo Brasil durante aqueles anos de incertezas. Nessa música encontramos um dos versos mais tristes e melancólicos da MPB: “Que rapaz é esse, que estranho canto. Seu rosto é santo, seu canto é tudo. Saiu do nada, da dor fingida, desceu a estrada, subiu na vida. A menina aflita ele não quer ver. A guitarra excita, pois é: pra quê?”
Wilson Simonal talvez tenha sido o cantor brasileiro mais bem preparado para o show business. Por ser dotado de uma técnica vocal incomum, e de uma presença de palco singular, ele passeava com total desenvoltura pelos mais diversos gêneros musicais, tendo inclusive se apresentado com Sarah Vaughan, uma das principais divas do Jazz. E foi por meio dele que a música “Sá Marina”, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar singrou diversos oceanos musicais e se tornou o seu maior sucesso. A música é uma toada moderna com uma letra muito peculiar, tendo em vista que Sá Marina foi o codinome encontrado por Tibério para descrever a beleza de Brasilina, uma professora que morava na rua da ladeira. “Quando ela saía de casa descendo a rua, os pudores se reviravam. Enquanto os homens babavam, as mulheres cuspiam na calçada, batendo janelas.”
Pixinguinha, o flautista virtuose, não foi o precursor do chorinho, todavia foi o responsável pela sua consolidação como gênero musical. Compôs centenas de peças que o consagraram como instrumentista, compositor e também como o primeiro arranjador musical do cenário nacional. Dentre as obras escritas por ele, uma conduz uma peculiaridade ímpar, pelo fato de ter sido composta como um autêntico chorinho, em três partes. Na época, recebeu o nome de “Evocação”. Vinte anos após a primeira gravação instrumental do choro “Evocação”, Pixinguinha conhece em um bar suburbano do Rio de Janeiro o mecânico Otávio de Souza, que lhe expõe um inacreditável poema que havia feito exclusivamente para aquela música. Com um refinamento inesperado e usando um português clássico, o chorinho “Evocação” se tornou a Valsa “Rosa”, pois a letra abarcava somente as duas primeiras partes do choro. A primeira gravação ganhou uma interpretação célebre e memorável de Orlando Silva.
Impossível fazer qualquer lista de músicas da MPB sem mencionar Noel Rosa. O artista, embora tenha tido uma vida cronologicamente efêmera, deixou uma perene, vasta e sempre atual obra musical. A mais importante delas, a meu ver, é o samba-canção “Último desejo”. Como na maioria de suas letras, percebe-se um traço autobiográfico na canção, em que Noel delineia sua paixão por Ceci, a dançarina de bordel que trocou seu amor pelo de Mário Lago. A música, cujo requinte é por demais simples, traz na letra o testamento que escreveu seis meses antes de morrer tísico.