Pilar del Río, viúva, porém alegre

Diário da Flip

A Flip 2017 chega ao fim. Foram dezenas de mesas redondas e debates literários. Centenas de quilos de moita consumidas. Milhares de litros de cerveja entornados. Milhões de fotos e selfs com celebridades postadas. Incalculáveis tropeções no calçamento de pedregulhos. Alguns livros lidos. Uma linda festa, sem dúvida. Recapitulando esses dias, concluo que a noite de sexta-feira foi a mais memorável.

A principal mesa da noite, que aconteceu dentro da igreja da praça do centro histórico de Paraty, tinha o título de “Na Contracorrente” e seria composta pela jornalista e tradutora Pilar del Río, viúva, musa e presidente da Fundação José Saramago, e pela arqueóloga Niède Guidon. Eu tinha uma aposta sobre essa mesa: achava que o falecido Saramago iria ser pouco citado, que se tentaria valorizar ao máximo a persona individual de Pilar.

Com todo respeito à senhora Guidon, meu maior interesse era mesmo por Pilar. O motivo é o documentário “José e Pilar” (2010), dirigido por Miguel Gonçalves Mendes, que conta a história do casal. É um filme muito bonito e inspirador, que quase me faz acreditar no amor burguês (embora os dois sejam comunistas). Em meu imaginário, por conta do filme, eles entraram no rol de casais lendários como Abelardo e Heloisa, John e Yoko, Salvador e Gala, Alexandre Frota e Cláudia Raia. Com a vantagem de que tiveram um final feliz, no sentido de que ele morreu feliz por tê-la encontrado.

Em determinado momento do documentário, ao longo do qual se está organizando burocraticamente a Fundação, Pilar estabelece que quer ser chamada de “presidenta”. Saramago acha um despropósito, uma aldrabice. Defende que a palavra não existe (detalhe no qual Saramago está errado, a palavra existe, embora seja de uso raro). Pilar, indignada, responde que “presidenta” não existia porque o cargo não existia, o cargo passando a existir a palavra também passa a existir. Mulher de convicção. E é justamente essa reconhecida convicção que imaginei que iria fazer com que tentassem desvincular sua imagem da do marido célebre.

Quando o evento começou a primeira notícia foi que Niède Guidon não poderia comparecer por motivos de saúde. De pronto ficou estabelecido que a mesa seria transformada em um debate sobre ações institucionais para o avanço das ciências em uma conversa com Pilar. A presidente Del Río subiu ao palco-altar com desenvoltura. Mostrou-se uma senhora jovial, elegante e divertida, vestindo preto e usando tênis prateado com detalhes azuis. Preso à blusa uma joia em forma de faisão, presente de Jorge Amado. Usava uma discreta corrente no pescoço, com a aliança de casamento. De imediato, seduziu (quase) toda a plateia.

E quanto a minha aposta? Acertei errando. A sombra de Saramago foi incontornável, mas apareceu de modo inicialmente constrangida. O escritor Alexandre Vidal Porto, responsável pela mediação da fala, chegou a gaguejar quando falou pela primeira vez sobre a relação entre Saramago e Pilar. Inteligentemente, a presidente Del Río percebeu a situação e tratou de contorná-la naturalizando sua união com o mito. Foi a melhor saída possível. De modo geral, usou esses momentos para humanizar Saramago, reclamando divertidamente de suas idiossincrasias. Sobretudo de sua obsessão por música, que o fazia escutar o mesmo disco de Leonard Cohen seis vezes seguidas. Mesmo assim, logo que possível se mudava de assunto. Saramago voltando aqui e ali.

De modo geral, a fala de Pilar foi mais política do que literária. Falou de feminismo, de ditadura, de direitos humanos e temas correlatos. Seus pontos de vista são bastante convencionais, perfeitos para agradar a plateia radical chique da Flip. Respondeu perguntas idiotas sem perder a classe. Quando comentou sobre a polêmica acerca da palavra “presidenta” foi ovacionada. Como era de se esperar, muitos gritaram “fora Temer”, e alguns arriscaram um envergonhado “volta Dilma”, sem muito sucesso. Não vi, mas me falaram que nesse momento começou uma briga entre alguns espectadores.

Em resumo, a Flip 2017 foi em homenagem ao escritor Lima Barreto, mas Pilar del Río teve seu momento de protagonismo. Driblou o fantasma do marido, sem precisar esconder o cadáver, impondo sua individualidade elegantemente. Muito mais elegantemente do que os organizadores da mesa seriam capazes de prever. Aplausos para a dama de preto.

De minha parte, agora que acabou a Flip, vou voltar para casa e rever “José e Pilar” aos gritos de “Volta Saramago”.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.