Estou em Paraty e não me lembrei de você

Diário da Flip,
25 de julho de 2017

Estamos no Esquenta para o festival literário internacional de Paraty. E quando digo Esquenta é Esquenta mesmo, com letra maiúscula. Para todos os lados que olhamos vemos gente do bem, superlegais e engajadas em projetos sociais, isso quando não são os próprios personagens dos projetos sociais. Só falta a Regina Casé. Ou nem falta, não descarto a possibilidade de que ela esteja por aqui, entrevistando algum líder comunitário, artesã de gênio ou autodidata que aprendeu a ler ao encontrar algum livro do Lima Barreto no lixão. Espero que sim. Se for mesmo, bem-vinda a Paraty, rainha Regina, nossa Chacrinha pós-moderna: a cidade tem tudo a ver com você. Tudo aqui é colorido: janelas, portas, barquinhos. Colorido e cheio de artistas. Parece o Projac.

Claro que em Paraty também existem pessoas normais, cheias de defeitos e pecados, mas essas, geralmente, estão escondidas atrás de balcões e bandejas, ajudando a fazer mais coloridos os dias das pessoas do bem, superlegais e engajadas. Todos convivem na mais absoluta harmonia, num verdadeiro mutualismo. Quem poderia criticar tão feliz arranjo urbano? Quem ousar que atire a primeira pedra.

Falando em pedra, Paraty já foi acusada de ser um esgoto a céu aberto. Injustiça. Tem um ou outro foco de esgoto, além do canal (que me lembrou a Cloaca Maxima romana), claro. Mas a cidade em si é bem limpinha e bonitinha. O que chama atenção mesmo, e incomoda, é o calçamento de pedra, muito irregular e cansativo de andar. É o pior calçamento da história das cidades históricas. Não estou falando de paralelepípedos ou pedras portuguesas, mas de pedregulhos mesmo. Da mesma forma que não se pode assobiar e mastigar cana ao mesmo tempo, é bem difícil andar e olhar o casario histórico de Paraty, sob pena de tropeçar nas pedras. Ou pior: se a pessoa estiver de sandália, que percebi ser uma indumentária típica da região, de perder a tampa do dedão. Como continuar sendo do bem, superlegal e engajado pulando de dor, sem a tampa do dedão, xingando a mãe dos pobres fazedores de calçamento de pedra? Até porque eles estavam certos; afinal, qual a vantagem de ser funcionário do mês em um trabalho compulsório? Seja como for, melhor não dar sorte ao azar. Ande olhando para baixo. Fica a dica. E nada de andar e ler ao mesmo tempo.

Mas ler em Paraty é difícil. Encontrei miçangas, chaveirinhos, pingas mil, namoradeiras, mas nada de livros. Vamos ter que esperar que abra aquela livraria meio atravessada que tem o monopólio da venda de livros no festival. Enquanto isso, vou ficando aqui, apurando minha canalhice meio amadora, para me diferenciar de tanta gente boa, superlegal e engajada. Lima Barreto aprovaria.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.