A máquina do esquecimento: como o Google Discover e a busca redesenharam a internet para o raso — e silenciaram a profundidade

A máquina do esquecimento: como o Google Discover e a busca redesenharam a internet para o raso — e silenciaram a profundidade

Em uma madrugada de março de 2025, o editor de um site cultural brasileiro revisava os relatórios de audiência pela centésima vez. Nada fazia sentido. Os artigos que mais tempo exigiram — perfis literários, entrevistas com cineastas, ensaios sobre o impacto da inteligência artificial na narrativa contemporânea — haviam, simplesmente, desaparecido. Eles ainda existiam no site. Mas, para o público, tinham sumido do mapa.

O tráfego havia despencado 76% em menos de duas semanas. Sem aviso. Sem penalidade. Sem explicação. “Foi como se tivéssemos deixado de existir para a internet”, ele diria semanas depois, em um grupo de jornalistas. Muitos ali tinham histórias parecidas.

Nos bastidores do jornalismo digital, uma palavra começou a circular com um peso quase clínico: apagamento. E o que a princípio parecia uma anomalia local revelou-se um fenômeno global. Uma reorganização silenciosa do que é visível e do que é oculto, operada — quase sempre — por um nome único: Google.

O desaparecimento como novo normal

O Google Discover, lançado anos atrás com a promessa de entregar ao usuário conteúdos alinhados aos seus interesses, passou a funcionar como uma espécie de curadoria algorítmica definitiva. O feed deixou de sugerir reportagens de fôlego, análises críticas, ensaios profundos. No lugar, surgiram receitas, listas, horóscopos, frases recicladas de redes sociais e artigos de entretenimento efêmero.

O que define o que aparece ali? Ninguém sabe ao certo. Os engenheiros do Google dizem que são “sinais de interesse e engajamento”, “preferências inferidas”, “comportamento de navegação”. Mas esses critérios não são auditáveis, nem previsíveis. Sites que publicam conteúdo original e especializado passaram a ser eclipsados por páginas que reescrevem o que já circula — com menos cuidado, menos apuração, menos autoria.

É uma lógica circular: o algoritmo mostra o que engaja, e o que engaja é o que já foi visto antes. O Discover, então, deixou de ser uma vitrine da descoberta — e tornou-se um espelho distorcido de hábitos passados.

O buscador que não busca — seleciona

O problema não termina no feed. O próprio Google Search, a ferramenta central de busca do planeta, com mais de 8 bilhões de consultas diárias, também começou a apresentar sinais do mesmo fenômeno: reportagens originais sumindo dos resultados, sites penalizados sem razão aparente, conteúdos repetitivos em destaque. A lógica da visibilidade passou a ser governada por algoritmos de “qualidade” cuja definição permanece obscura.

Nos fóruns técnicos, o termo “shadowban algorítmico” tornou-se comum. Ele descreve o desaparecimento de conteúdos sem que haja qualquer notificação formal. “É como ser condenado sem julgamento”, resumiu um desenvolvedor espanhol, cujo portal investigativo perdeu 90% do tráfego após uma atualização silenciosa nos servidores do Google.

Nos bastidores da mídia, grandes veículos de imprensa observam a queda em silêncio. O medo de admitir que sua audiência depende, em boa parte, da aprovação tácita do algoritmo é real — e institucional. Há empresas que criaram departamentos inteiros dedicados apenas a entender como o Google pensa. Uma espécie de diplomacia informal com um império que não responde cartas.

A nova cartografia da relevância

Estamos testemunhando uma mutação invisível da ideia de “relevância”. Antes, ela era um conceito editorial: algo era relevante porque trazia contexto, impacto, novidade, humanidade. Agora, é um cálculo estatístico: algo é relevante porque foi clicado, porque gerou tempo de permanência, porque ativou alguma reação emocional.

Essa nova curadoria automatizada reorganizou a internet. A superfície ficou saturada de conteúdos leves, otimizados para algoritmos — e não para leitores. Por trás, nos porões digitais, acumulam-se reportagens profundas, análises culturais, denúncias, críticas — textos que não foram banidos, mas também não são mais visíveis.

É como se a internet tivesse sido redesenhada para parecer infinita, mas só permitir que vejamos seus espelhos mais rasos.

Quem decide quem existe?

Esse modelo levanta uma pergunta estrutural, muitas vezes negligenciada: quem tem o poder de definir o que é visível? E o que significa perder a visibilidade em um mundo onde ser encontrado equivale a existir?

O Google afirma não ser uma plataforma de conteúdo, apenas um indexador. Mas, ao decidir o que indexa, e em que ordem, ele atua como um editor universal — sem responsabilidade editorial. Nenhum veículo de imprensa jamais teve tanto poder. Nem o maior conglomerado televisivo dos anos 90 podia decidir quem seria lido por bilhões com um único ajuste de código.

A busca tornou-se o próprio filtro da experiência. O Discover é o novo mural da praça pública. Mas ambos funcionam sem regulação, sem responsabilidade social e — pior — sem transparência.

A crise da autoria

O mais grave, talvez, seja o colapso da ideia de autoria. Em vez de premiar o inédito, o sistema favorece o derivado. Páginas que copiam, traduzem, reescrevem, adaptam sem citar fontes têm, muitas vezes, mais chances de subir nos rankings do que os sites que fizeram o trabalho duro da investigação.

Para os profissionais do jornalismo, isso cria um impasse ético. O que vale mais: investir horas em uma reportagem que talvez ninguém veja? Ou seguir o modelo da reescrita rápida, otimizada para o robô e não para o leitor?

Alguns resistem. Muitos já desistiram.

O silêncio como estratégia

Parte da tragédia é silenciosa. Os grandes portais, mesmo os que sofreram perdas profundas, não publicam editoriais sobre o tema. Evitam manchetes. Evitam atrito. O algoritmo é agora também um ator político — e, como tal, não se deve contrariá-lo abertamente.

“Vivemos numa espécie de censura voluntária”, diz uma editora de cultura de um dos jornais mais lidos do Brasil. “Sabemos o que o algoritmo quer. E sabemos o que ele não mostra. Então, pouco a pouco, sem declarar, a pauta muda. As perguntas mudam. Os temas desaparecem antes mesmo de serem pensados.”

Um império sob suspeita

Nos Estados Unidos, o Google enfrenta um dos maiores processos antitruste de sua história. A acusação: práticas predatórias e monopólio na distribuição de informação. Na União Europeia, o cerco se intensifica. Na Austrália, uma nova legislação obrigou a empresa a negociar com veículos de imprensa. No México, no Canadá e na Índia, discussões semelhantes ganham corpo.

Mas o problema é mais profundo do que qualquer legislação pode resolver: trata-se de uma transformação cultural, em que o código substitui a curadoria, a métrica substitui o critério, e o raso substitui o relevante.

O que está em jogo

Não se trata apenas de audiência. Nem de dinheiro. Trata-se de quem somos quando buscamos saber. De como definimos a relevância de uma ideia. De como o conhecimento circula. De como uma civilização se informa.

Se o Google — por conveniência ou por lucro — decidiu que o que merece ser mostrado é o que prende o olhar por dez segundos, então a consequência inevitável será uma geração que já não busca entender — apenas confirmar.

Um futuro que desaparece

A internet foi vendida como uma promessa de pluralidade, de acesso, de descoberta. Mas hoje, o que ela mostra, cada vez mais, é o que nos distrai — não o que nos desafia.

No fim daquela madrugada de março, o editor brasileiro fechou o painel de audiência. Os números estavam lá. Claros. Dolorosos. Mas inúteis. Ele caminhou pela redação vazia, passando por estantes com revistas antigas, livros marcados, recortes de jornais. Um mundo analógico que ele julgava ultrapassado.

Foi então que sussurrou, para si mesmo, a frase que daria título ao editorial que jamais publicou: “Talvez o algoritmo não esteja nos escondendo. Talvez só esteja nos ensinando a desaparecer.”

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.