Três anos antes que os famigerados reality shows — muito pouco show e ainda menos reality — se tornassem populares e infestassem o Brasil como uma praga radiativa, Peter Weir levava às telas “O Show de Truman”, reflexão sagaz e divertida acerca de nossa exposição diária a “notícias”, “gente que vira notícia”, factoides, lixo, enfim. Desde então, a vida tem sido um feérico espetáculo, interminável, com mais de mil palhaços, motociclistas do globo da morte, trapezistas, domadores de feras e mulheres barbadas no picadeiro.Assim é, se lhe parece: a vida tem as dimensões e a natureza que se lhe queiram dar, e é dessa forma que Truman Burbank procede, tentando digerir a súbita estranheza com muito do que julgou normal ao longo de seus treze mil dias sob o sol.
Sem querer, Weir e o roteirista Andrew Niccol alertavam para os riscos da onipresença da tecnologia e seus derivados, tramando contra a humanidade em silêncio, lobo em pele de cordeiro, até que passe a uma adversária desleal, ardilosa e perversa, emulando os mais de 140 mil anos de truculência do homo sapiens sapiens, fervida e refervida nos caldeirões da ganância, do poder a todo custo e do ódio. Enquanto isso, Truman necessita sua própria tábua de salvação, fazendo um esforço para entender por que sua rotina parece tão interessante para todo mundo, esmiuçada pelo programa de televisão mais grotesco jamais visto, e agora conhecida do país todo.
O personagem central pensa ter a vida que pediu a Deus, gozando de relativo conforto material em Seahaven, uma vila planejada na Costa do Golfo, perto de Tampa, na Flórida, e por aí Weir já dá algumas pistas quanto ao que deseja comunicar. Casinhas padronizadas, todas do mesmo tamanho e da mesma cor, lembram o cenário de uma sitcom obsoleta, mas que se perpetua na grade de uma emissora voltada à classe média baixa porque é exatamente esse o conteúdo a que eles querem ter acesso. Truman é um vendedor de seguros um tanto acomodado na carreira, sossego patológico que se reflete também no casamento com Meryl, de Laura Linney, com quem começou a namorar no colégio, depois que Lauren, sua pretendente inicial e mais sincera, escapa-lhe por entre os dedos, sem metáfora.Essa é a segunda grande mandraca em “O Show de Truman”, por meio da qual o diretor passa a explicar que o vazio existencial de seu anti-herói vem de longe, mas continua a oprimi-lo a ponto de o fazer deslocar-se até Fiji, o arquipélago no Pacífico Sul, onde Lauren mora com a família.
Aos poucos, começa a se descortinaro enigma que cerca Truman e seu existir farsesco, em boa medida relacionado a Lauren (que na verdade chama-se Sylvia), ao passo que Meryl segue cumprindo seu papel de esposa devotada, obedecendo aos comandos de Christof, um produtor de TV que tem controle absoluto sobre o que acontece em Seahaven, porque vive encafuado numa sala acima do horizonte da cidade. A performance de Ed Harris, pródiga das nuanças que um enredo dessa natureza requer, quase empana Jim Carrey num momento especialmente luminoso, e ao saber juntar esses dois fios à primeira vista desencapados Weir dá o arremate perfeito para uma narrativa vesana 27 anos atrás, mas que o tempo — e a própria sandice do homem — trataram de normalizar.
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