Lutando contra seus impulsos, tentando dominar suas fraquezas, vulnerável aos movimentos que não pode entender, justamente aqueles que definem os rumos de como será sua vida frente às incessantes mudanças do mundo que o rodeia, o homem enfrenta seus íntimos pesares como consegue, lida com suas inadequações mais flagrantes enquanto devota-se a sufocar aquilo que sabe que nunca há de lhe dar sossego, que arruína silenciosamente seu espírito, que aflora-lhe à pele e revela o monstro que esconde. Sozinho, do berço ao túmulo, sujeito à vasta gama de intempéries que ameaçam-no com uma violência que nem sempre é capaz de suportar, o gênero humano se livra por um triz de algumas trapaças do destino, permitindo-se gostosamente enredar nas teias do imponderável, depois de haver vislumbrado todas as chances de escapar do abismo e ter preferido lançar-se com tudo em suas profundezas.
Como se incompatível ao estar do homem no mundo, a própria felicidade se nos apresenta como um dos tantos perigos da vida. Presa dos mecanismos de repressão e autocensura dos quais nunca consegue se livrar; tentando contornar a dureza do real valendo-se do poder salvífico e intangível da fé; colocando à prova seus limites e seu empenho em tornar reais as mudanças, óbvias ou profundas, de que considera-se merecedor; sempre flertando com a tragédia, à espreita, calada e sedutora, nas curvas mais sinuados do caminho; equilibrando-se sobre o delicado fio que aparta o caos do inferno. A indústria cultural descobriu nas séries um filão tão prolífico quanto convincente de chegar a públicos os mais diversos, esmiuçando temas sensíveis como a inteligência artificial, a biografia de personagens da História e, evidentemente, as artimanhas dos assassinos seriais e psicopatas em sentido amplo.
“Cassandra”, uma joia em seis episódios da novíssima produção audiovisual da Alemanha, mostra quão perigosas podem ser as demandas que o homem inventa, encarnadas por uma assistente virtual inativa há meio século que torna à vida com o propósito de acertar as contas com a humanidade. Por seu turno, “Maria e o Cangaço” repassa a trajetória de Maria Gomes de Oliveira (1911-1938), a Maria de Déa ou Maria Bonita, como é conhecida até hoje, figura central no noticiário dos anos 1930, capaz de provocar estranhamento e admiração. Já na aclamada “You”, os showrunners Greg Berlanti e Sera Gamble concentram-se em Joe Goldberg, um vendedor de livros que perscruta a vida de seus clientes a partir de suas preferências literárias, mas não só. Juntam-se a elas outras quatro produções, da Netflix e da Disney+, arroladas em ordem alfabética, cada qual firme em sua meta de comprovar o poder das tramas fragmentadas, plurais e incômodas como o próprio gênero humano.

A inteligência artificial continua mesmo mais diabólica que santa. Essa é a opinião de Charlie Brooker, o criador de “Black Mirror”, e de Ally Pankiw, a diretora do primeiro episódio da sétima temporada da série, queridinha de dez entre dez nerds, não necessariamente pela forma, mas decerto pelo conteúdo. De “Pessoas Comuns”, disparado o melhor capítulo da nova fase do programa, escorre uma grossa lava de pessimismo, corroendo tudo o que encontra e fazendo a alegria dos fãs mais ortodoxos. Esta é a história de uma professora do ensino fundamental e um metalúrgico que suam sangue para dar conta de pagar todas as contas e, entretanto, saem-se muito bem, achando tempo e dinheiro para comemorar o aniversário de casamento num hotelzinho de beira de estrada onde se hospedaram no começo do namoro, até serem colhidos por um infortúnio que ganha cores de tragédia. O que o delicioso pessimismo de Brooker e Pankiw quer dizer-nos, afinal, é que devemos entender os sinais da vida e deixar que ela faça de nós o que desejar. Cenário muito menos desalentador que colocar nossa pele e nossa sanidade nas mãos invisíveis da big data.

A exemplo de “Black Mirror”, “Cassandra” também toma a aprendizagem das máquinas por uma maldição com a qual o ser humano terá de avir-se, embora com mais sutileza. Depois de uma morte em família, David Prill leva a esposa, Samira, e os filhos, Flynn e Juno, para o interior da Alemanha. Espera por eles um casarão abandonado que, conforme se vai assistir, foi alvo de um experimento pioneiro no começo dos anos 1970. Considerando-se que a internet, fruto de um projeto militar que visava ao compartilhamento seguro de dados em tempo real saiu no papel em 1969, sendo aprimorada e testada à exaustão até ficar no ponto para invadir o cotidiano de 99% dos habitantes do globo, independentemente da classe social a que pertençam, da cor de sua pele e da fé que professam, Cassandra, a doméstica ideal, é um verdadeiro fenômeno produzido pelo homo sapiens sapiens. O texto do diretor brinca com signos que qualquer reconhece de imediato, a exemplo da constituição física, o HD de Cassandra, em quase tudo semelhante a Rosie, a empregada dos Jetsons, retratados na animação homônima desenvolvida por William Hanna (1910-2001) e Joseph Barbera (1911-2006) e o nome da ginoide decerto foi escolhido a partir de uma menção oblíqua a Cassandra, a profetisa dos vaticínios absurdos, que causavam escárnio e revolta na Grécia Antiga. A Cassandra de Gutsche é mesmo visionária — e assustadora.

Os anjos da guarda dos investigadores dos filmes sobre maníacos tão perversos quanto sanguinários, capazes de se encarniçar de uma pobre vítima pelo simples motivo de tê-la julgado atraente, ou, pelo contrário, achá-la feia demais; invejar-lhe os dotes artísticos; ou por querer que a humanidade expie seus pecados mediante o sacrifício de inocentes (que, claro, não são assim tão puros), estão sempre às raias da loucura. Essa é a imagem que a sueca Camilla Läckberg esforça-se para passar em “O Domo de Vidro”, na qual brinca com muitos dos espaçosos clichês das produções do gênero tratando de conferir substância dramática à narrativa valendo-se de argumentos diretamente proporcionais ao pretenso alcance mercadológico dessas publicações. A história começa com um retrospecto da vida de Lejla Ness, uma das mais respeitáveis criminologistas da Suécia, sequestrada na infância e mantida numa caixa de vidro até conseguir escapar por um descuido de seu algoz. Passam-se cerca de vinte anos e Lejla está nos Estados Unidos, para onde mudou-se há algum tempo, quando recebe o telefonema do pai, Valter, para informar-lhe que a mãe faleceu. Valter e essa mulher que serviu-lhe de referência materna, mas que nunca aparece, por motivos que o roteiro de Amanda Högberg e Axel Stjärne vai esclarecendo aos poucos, são os pais adotivos de Lejla. Ainda que a volta da protagonista a Granås, uma vila pacata do interior sueco, não surta o efeito que se poderia esperar de um material que ambiciosa o suspense, os diretores Henrik Björn e Lisa Farzaneh vencem por pontos, amparando-se em filigranas técnicas como a edição e a fotografia.

O mal assume formas as mais diversas nas sociedades ao redor de todo o planeta, estendendo seus tentáculos sobre vilarejos perdidos nos rincões de países ricos e pobres, onde seduz as populações mais vulneráveis com suas falsas promessas de ganhos vultosos e aparentemente fáceis. Desse modo, ser um criminoso perverso, impassível, que faz seu trabalho sem deixar-se envolver com os dramas e as tragédias de quem quer que deve ter suas dificuldades. O personagem-título de “O Jardineiro”, contudo, poderia passar toda a vida assim, gozando das muitas vantagens de não ser capaz de solidarizar-se com a dor alheia, até que misteriosamente começa a experimentar uma sensação inaudita, que talvez signifique o término de uma carreira respeitada no submundo, escondida por baixo de marias-sem-vergonha e crisântemos. Durante os seis capítulos da série criada por Miguel Sáez Carral, nunca se sabe qual será o próximo passo numa história que se caracteriza por conseguir ocultar o que parece óbvio, truques que a direção de Rafa Montesinos e Mikel Rueda deixam mais e mais sofisticados.

É assombrosa a semelhança entre o mundo de 2025 e a Itália de 1860, retratada em “O Leopardo” (1958), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957). Depois de mais de 160 anos da publicação póstuma de um dos maiores romances do século 21, a Itália vê-se enredada numa perigosa brincadeira, esticando mais que o recomendável a corda da tolerância com movimentos de extrema-direita, imprudência que acabou por colocar na chefia do governo Giorgia Meloni, uma notória simpatizante do fascismo e seu “Deus, Pátria e Família”, que autoriza-lhe a insensibilidade para temas urgentes e supranacionais como o crescente êxodo de imigrantes e a perseguição gratuita a cidadãos gays, questionando e cassando direitos adquiridos em gestões passadas. Tudo isso decerto reacende o interesse do público pelo trabalho de Lampedusa, cujas cores foram captadas pela primeira vez em 1963 por Luchino Visconti (1906-1976) no filme homônimo. Agora, o showrunner britânico Richard Warlow prova que o palermitano tem ainda bastante lenha para queimar e atira-nos ao rosto verdades incômodas muito mais abrasivas que a célebre frase de Tancredi de Falconer, que diz, reproduzindo o cinismo do tio, que tudo deve mudar para que tudo continue igual. A Terra virou uma imensa Donnafugata.

O Brasil parou naquele 28 de julho de 1938. Depois de setenta anos, o governo brasileiro conseguia, afinal, dar fim a um bando de nômades armados que deslocavam-se pelo sertão nordestino, do Ceará à Bahia, pilhando armazéns, estuprando donzelas de família e partindo para o tudo ou nada nas circunstâncias em que se viam cercados pelas volantes e seus macacos, os soldados de todo o país que, em uniformes marrons, perseguiam esses homens e mulheres que ousavam rebelar-se contra o que julgavam uma tirania institucional, que tornava os mais endinheirados e massacrava os mais vulneráveis, sobretudo os que davam o azar de ter vindo ao mundo naqueles nove estados distantes, esquecidos, explorados pelos velhos coronéis das oligarquias locais. “Maria e o Cangaço” repassa algumas dessas questões, mirando Maria Gomes de Oliveira (1911-1938), Maria de Déa ou Maria Bonita, como passou à História. A baiana morena das pernas grossas foi uma personagem central no noticiário dos anos 1930, capaz de provocar estranhamento e admiração, tópicos muito bem destrinchados por Sérgio Machado nos seis capítulos da nova minissérie da Disney+, livremente inspirados em “Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço” (2018), a biografia romanceada da jornalista Adriana Negreiros. Em cenas que primam pelo realismo, Machado mostra o real cotidiano dos cangaceiros liderados por Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião, o cabra da peste com quem Maria Bonita, interpretada de modo intenso por Isis Valverde, dividiu sonhos e desilusões, até que não restasse mais nada.

Sem sorte não se chupa nem um Chicabon, disse Nelson Rodrigues (1912-1980) certa feita, e tanto menos se sai de cama e se enfrenta os perigos grandes e pequenos da vida como ela é na rua. Dissociar o homem de sua ganância, que por seu turno vem muitas vezes escondida sob o manto exuberante da natureza, é tarefa pretensiosa para qualquer produção audiovisual, de modo que nem sempre bastam um bom diretor, elenco afinado e uma edição cuidadosa para liquidar a fatura. Em sua quarta temporada, “You” esmiúça as diversas faces da psicopatia como poucas vezes se viu, tomando um vilão por um anti-herói carismático, que arrasa corações femininos com uma personalidade doce que esconde uma fera. Joe Goldberg encarna muitas reflexões caóticas acerca do existir e suas franjas correlatas, e tudo ao seu redor parece vibrar numa frequência irreal, como se não passasse de um sonho muito estranho. Os showrunners Greg Berlanti e Sera Gamble levam essa sensação às ultimas consequências, sempre apostando na performance de Penn Badgley para Joe, um vendedor de livros que perscruta a vida de seus clientes a partir de suas preferências literárias, mas não só. A essência de “You” está na maneira bastante original e mesmo corajosa como a equipe de 25 diretores conduz os ânimos do personagem, sempre disposto a uma aventura até que chegue ao seu alvo, mulheres bonitas e vulneráveis em certa proporção que pensam dever-lhe alguma coisa.