O livro que todos deveriam ler para acreditar em milagres, acalmar o espírito e elevar a alma

O livro que todos deveriam ler para acreditar em milagres, acalmar o espírito e elevar a alma

Às vezes, a história da literatura se curva como um rio — silenciosa, quase imperceptível — até que, de repente, abre um novo braço na paisagem. “Sidarta”, de Hermann Hesse, é um desses desvios. Não porque grite. Não porque se imponha. Mas justamente porque sussurra algo que, mesmo hoje, atravessa as defesas mais bem construídas. É estranho pensar que um livro tão pequeno, tão quase modesto na forma, tenha carregado tanta esperança contra o peso brutal do século 20. E ainda carrega.

Quando Hesse escreveu esse romance — nos anos 1920, quando o mundo parecia mais perdido do que novo — ele não olhava apenas para a Índia, para o Buda ou para a mística oriental que tanto fascinava os ocidentais. Olhava também para as ruínas de sua própria casa: a Europa em colapso, os valores de ontem empilhados como escombros. “Sidarta” não nasce como um guia exótico para almas cansadas; nasce como um gesto de desespero contido, de quem já não acredita em sistemas, mas ainda crê, sabe-se lá como, na busca. Hesse não foi um evangelista da redenção — era, antes, um cartógrafo da solidão.

Sidarta, de Hermann Hesse (Record, 168 páginas, tradução de Herbert Caro)

O romance se desenrola com a lentidão teimosa de uma canção antiga. Não há pressa. Cada capítulo parece dar voltas em torno de uma mesma pergunta, como se hesitasse em respondê-la de verdade. O ritmo quase meditativo, a linguagem deliberadamente enxuta, criam uma sensação de suspensão — como a respiração que se alonga antes de um salto que talvez nunca venha. Hesse não se preocupa em construir reviravoltas ou heroísmos fáceis. O que propõe é mais raro: o mergulho silencioso na banalidade e na maravilha da experiência comum.

As leituras de “Sidarta” são tão variadas quanto inevitáveis. Para alguns, o livro é uma ponte sincera entre culturas distantes — um esforço genuíno de tradução espiritual. Para outros, é um espelho narcisista: o velho Ocidente olhando para si mesmo, travestido de sabedoria oriental. Há ecos de ambos os lados, e talvez Hesse soubesse disso. Ele não tentou construir um Buda europeu; tentou, talvez, construir um ser humano atravessado por todas as ausências e todas as promessas. E nisso, paradoxalmente, foi mais fiel à tradição que o inspirava do que muitos discípulos mais ortodoxos jamais conseguiram ser.

É difícil falar dos temas de “Sidarta” sem cair em armadilhas. Transcendência, impermanência, fracasso, renascimento — palavras gastas de tanto uso, frágeis de tanto peso. E, no entanto, Hesse as reveste de uma estranha inocência. Sidarta, o personagem, não triunfa; não atinge um estado místico facilmente embalável em fórmulas. O que descobre — se é que descobre — é uma maneira de habitar a vida sem exigir dela mais do que ela pode dar. Aprender a escutar o rio. Aprender a ver no movimento o que parecia ser ausência. Aprender que o saber verdadeiro — se existe — é uma espécie de silêncio.

Se há uma leitura que ainda nos escapa — e talvez escape justamente por ser a mais simples —, é a de que “Sidarta” não é sobre chegar a lugar algum. É sobre aceitar que toda chegada é ilusória, que todo ponto final é apenas mais uma curva do rio. A sabedoria que Hesse desenha, com mão quase transparente, não é a da iluminação heroica, mas a da paciência diante do que não se entende. Uma sabedoria sem vitórias, sem troféus — apenas o lento amadurecimento de quem aprende, tarde, que viver é, em última instância, falhar melhor.

E é justamente por isso que o romance ainda fala conosco, cem anos depois. Em tempos em que tudo nos empurra para o sucesso imediato, para respostas prontas, para certezas performáticas, “Sidarta” insiste em algo que quase esquecemos como se faz: a arte de esperar, de ouvir, de perder sem se perder. A arte de seguir — sem precisar vencer.

Às vezes os verdadeiros milagres não são grandes revelações nem eventos espetaculares. São essas pequenas teimosias humanas: alguém, em algum lugar, ainda escrevendo livros que nos ensinam, discretamente, a respirar.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.