Muito já se disse e se escreveu a respeito da famigerada “função da arte”. Há quem diga que a função da arte é educar, preparar o homem para o futuro, instigar no homem uma consciência de fazer parte de um todo, de um organismo maior que seu próprio corpo, que sua própria família, seu próprio círculo de amigos, sua cidade, seu país, quem sabe esperando que deixe de caber no próprio planeta. Por outro lado, muitos defendem que a função única da arte é precisamente essa, ser arte. A arte pela arte é arte ao quadrado e, em muitos casos, é muito mais producente quanto a fazer girar a roda da evolução. A vida é um mar proceloso que se atravessa a bordo de uma nau sem casco e é a arte quem pincela com um pouco de beleza essa travessia.
A jornada do homem sobre a Terra é plena de surpresas, eventos inesperados que o colhem, trazendo em seu bojo ora prazer, ora situações infaustas, e mesmo sabendo de tudo isso, a gente não deixa nunca de esperar pelos inesperados da vida, ansiando, por óbvio, que nos sejam doces. A sensação de, assim, por acaso, encontrar um filme no qual jamais tínhamos reparado antes, gostar do leiaute da capa, a partir dele escarafunchar a ficha técnica, saber o nome daqueles atores dos quais você não ouvira falar até então, assistir, gostar, ou mesmo, achar uma porcaria, não tem o condão de que qualquer um se sinta um pouco menos ignorante, um bocadinho menos perdido no mundo? As novas — e sempre úteis — descobertas, e o gosto por fazê-las: eis o sal da vida! Mas e quando nossas expectativas escoam pelo ralo?
Como toda arte, o cinema também é feito de controvérsias. A vida seria uma inútil maravilha se, de tempos em tempos, não tivéssemos um rasgo de incerteza quanto às incontáveis questões que fustigam o gênero humano. Sonhos são a matéria-prima de filmes de categorias as mais diversas, e que grande revolução haveria de se dar nos povos do mundo inteiro se cada um tivesse sonhos grandiosos o bastante para serem perseguidos sem folga, até que, por fim, saíssem do baço plano das ideias e passassem à vida como ela é, o que, por óbvio, só seria possível se fôssemos dignos deles. Sendo assim, é árduo e mesmo martirizador tachar de “sobrestimado”, ou pretensioso, pedante, pleno de insuportáveis afetações e mesmo desonesto, ao valer-se de campanhas de divulgação massivas e vultosas para chegar aonde querem — o palco do Teatro Dolby, muitas vezes. De alguma maneira, os cinco filmes expostos na relação abaixo padecem de um ou outro desses defeitos, embora tenham sido gozado de sucesso junto ao público e reconhecimento de críticos famosos.
Sem dúvida, o caso mais emblemático dos últimos tempos é “Anora” (2024), o furacão de Sean Baker, sobre uma jovem stripper (e garota de programa) russo-americana que vive um efêmero conto de fadas ao tornar-se a obsessão do filho pródigo de um oligarca russo. Baker fora muito feliz ao deslindar uma face da indústria do entretenimento adulto no ótimo “Red Rocket” (2021), mas sua nova empreitada tem o sabor rançoso de um pastiche barato, que a beleza e o talento da atriz principal adoçam.
Retrocedendo mais de um quarto de século, chegamos a “Clube da Luta” (1999), de David Fincher, diretor também do bem-sacado “O Assassino” (2023) e do quase perfeito “Garota Exemplar” (2014). Hoje tido por cult, “Clube da Luta” teve aceitação módica por parte do espectador, o que atesta que não há regra quando se trata de mensurar o que a indústria cultural leva à praça. Situamos os longas avaliados em ordem cronológica, do mais recente para o de lançamento mais antigo, sublinhando que ninguém é o dono da verdade e a discussão de novos pontos de vista é sempre benfazeja. Veja-os (ou reveja-os) e diga-nos o que achou.

Exercendo esse ofício quase marginal de crítico de cinema, já me habituei a ir contra a corrente, mas admito que, em certas ocasiões, o incômodo é maior do que eu mesmo supunha. Este é o caso de “Anora”, o furacão de Sean Baker, sobre uma jovem stripper (e garota de programa) russo-americana que vive um efêmero conto de fadas ao tornar-se a obsessão do filho pródigo de um oligarca russo. O diretor foi muito bem ao descortinar uma face da indústria do entretenimento adulto no ótimo “Red Rocket” (2021), onde preenche quase todos os espaços com crítica social corajosa, inclusive à fina flor do lixo branco da América, de onde saiu Donald Trump. Baker é um excelente contador de histórias, sem dúvida, e Mikey Madison, uma atriz promissora, contrariando a voz cava da patuleia ao escancarar a dura vida fácil de garotas como Anora, seu primeiro personagem de fôlego depois de revelada por Quentin Tarantino em “Era Uma Vez em… Hollywood” (2019). Todavia, ao cabo de tanta propaganda, esperava-se bem mais do escolhido pela Academia como melhor filme no Oscar 2025. Madison também não deveria ter levado agora o prêmio de Melhor Atriz, pelo papel-título, e Sean Baker faz um trabalho digno de nota, mas não o suficiente para merecer as estatuetas de melhores Direção e Roteiro Original.

O italiano Gabriele Muccino quer envolver o público numa atmosfera de otimismo voraz. Desabridamente idealista, “À Procura da Felicidade” é uma exaltação ao sonho, ao delírio, quiçá à loucura, tudo com métodos milimetricamente estudados e de eficiência comprovada — não por acaso, o filme continua a ser campeão de bilheteria em workshops e palestras de motivação empresarial para multimilionários e pés-rapados com algumas contas a acertar com o destino (por motivos diversos, evidentemente) quase duas décadas depois de lançado, num já longínquo 2006. O mais intrigante é que a história contada por Muccino nada tem de original, talvez justamente porque inspirada na vida como ela é, feia, intransigente, dura, cruel, tanto pior se se atravessa um ciclo de pequenas tragédias pessoais que, claro, redundam em perda da capacidade laboral e em episódios de transtornos mentais de maior ou menor intensidade. “À Procura da Felicidade” é uma verdadeira aula de marketing, e isso não é exatamente um elogio.

O amor está sempre à espreita, como a grande ameaça da vida. Apaixonar-se pode ser a perdição irreparável de alguém, sobretudo se o sentimento avassalador de descobrir-se tomado pela vontade de estar além da própria pele vem num arroubo, mas viver nunca foi um problema matemático, cujo frio resultado não encerra nenhuma outra possibilidade. Outra vez, um encontro casual fomenta mentiras, paixões e mágoa entre Dan, Alice, Anna e Larry, que não conseguem romper os frágeis laços que ainda os unem. Entre uma e outra taça de vinho, entre um joguinho de sedução e outro, vêm à tona muita lavação de roupa suja, muita verborragia, muito barraco. Mas o fio tênue que os mantém ligados até se esgarça, mas nunca arrebenta de vez. E eles seguem assim, entre tapas e beijos, até porque não sabem viver de outro modo. Como diz o velho samba, que atire a primeira pedra aquele não sofreu por amor — ou pelo que Hollywood pensa ser amor.

A paixão entre Noah e Allie desagrada a família da moça. Eles precisam ser apartados a qualquer custo, e a solução mais óbvia e conveniente é que Noah se aliste. Ele é selecionado para lutar na Segunda Guerra Mundial, mas volta anos depois para provar que esse amor resistiu ao tempo e à dureza do combate. Allie está às vésperas de seu casamento com outro homem, o que nem de longe vai deixar Noah vexado, até porque ele sabe que Allie não o deixou de amar. Como acontece com “Closer”, Cassavetes vê-se obrigado a torcer o amor até que ele caiba à perfeição em moldes bastante austeros, o que sempre há de atrair um público tão específico quanto fiel. Decerto uma fórmula imbatível e contraindicação para faturar alto, sem muito apreço pela consistência da verdadeira arte.

As cenas iniciais de “Clube da Luta” confundem. Transcorrido quase um quarto de século, o longa de David Fincher causa um incômodo duradouro quanto à compreensão dos padrões a que o diretor se refere, evocando o romance homônimo de Chuck Palahniuk, para que se tenha, afinal, que a intenção aqui é mesmo lançar um manto de dúvida em cima do dito sexo forte e estrangular a falsa certeza que homens temos acerca de nossa habilidade em nos levantar das rasteiras do destino. É impossível não assistir ao filme e não ser imediatamente assaltado por reminiscências de tesouros do cinema macho a exemplo de “Perseguidor Implacável” (1971), de Don Siegel (1912-1991), ou qualquer dos dramas policiais encabeçados por Charles Bronson (1921-2003), e, por conseguinte, é também difícil não achar laivos de um homoerotismo consciente ou não, quiçá o jeito encontrado por Hollywood para abordar o tema sob uma perspectiva genuinamente viril, como faz Ang Lee em “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005) seis anos depois, ou Pedro Almodóvar no recém-lançado “Estranha Forma de Vida” — e voltamos ao faroeste de Dirty Harry, ops!, Clint Eastwood. O estranho casal composto por Edward Norton e Brad Pitt é até hoje um dos pontos mais altos em rodas sobre a fragilidade do homem pós-moderno, que sempre arruma jeitos tortos de extravasar as tensões de perigosas cobranças, as dos outros e as suas, e esquecer o fracasso o quanto possível. Às vezes são prazeres verdadeiramente bizarros, mas cada um vive como lhe apetece.