Algumas obras literárias, raras e luminosas, conseguem capturar o instante exato em que a cultura de uma geração se transforma em linguagem afetiva. “Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã”, de Gabrielle Zevin, é uma dessas obras — não porque romantize a tecnologia ou idolatre o universo dos videogames, mas porque reconhece neles a mais antiga das necessidades humanas: a de criar, partilhar e sobreviver à própria dor. Em torno de Sadie Green e Sam Mazer, duas crianças unidas por sessões de Super Mario Bros. em um hospital que cheira a desinfetante e melancolia, Zevin constrói uma narrativa que entende o jogo não como fuga, mas como um exercício corajoso de vulnerabilidade: o ato de jogar como uma forma de confiar, de se expor e de, inevitavelmente, se ferir.
Quando Sadie e Sam se reencontram anos depois, entre as multidões anônimas do metrô de Boston, já carregam no corpo e na alma as marcas invisíveis do tempo — ele, um sobrevivente de um acidente que lhe alterou para sempre a marcha física e emocional; ela, uma jovem mulher tentando existir em um campo ainda colonizado pelo masculino. O reencontro, no entanto, não reencena um simples retorno nostálgico: é o início de uma nova invenção em conjunto, a criação de um jogo que, inspirado na delicadeza e na potência das ondas de Hokusai, ultrapassa as telas e conquista o mundo. Com a adesão do magnético Marx Watanabe, a dupla funda a Unfair Games, e o que parecia ser uma celebração do talento juvenil transforma-se num intricado campo de batalha entre desejo, ambição e limites pessoais. Zevin rejeita qualquer impulso de simplificação e desenha, em vez disso, uma crítica aguda e comovente às relações mediadas por tecnologias que tanto conectam quanto isolam.

No coração dessa trajetória, Zevin opera uma inversão radical das expectativas românticas: seu interesse não recai sobre amores consumados ou paixões declaradas, mas sobre a arquitetura complexa de uma amizade criativa capaz de ser, simultaneamente, sublime e devastadora. Sam e Sadie, ao edificar mundos virtuais, criam, sem saber, um espaço íntimo onde o amor não exige a posse, mas se realiza na colaboração e no respeito mútuo. A ausência de sincronia amorosa entre eles não é uma falha a ser corrigida — é o próprio solo fértil de uma conexão que, precisamente por resistir às narrativas convencionais, atinge uma profundidade rara. A oposição entre arte e popularidade — para Sadie, integridade estética; para Sam, alcance popular — serve como motor de tensão, expondo ainda os abismos impostos por raça, deficiência e gênero em um ecossistema de criação que nunca é neutro.
Zevin, com impressionante maestria, transforma a lógica dos jogos em uma filosofia da existência. Cada partida, cada “game over”, cada reinício traz embutida a promessa e o terror do recomeço: a chance de reparar, de tentar diferente, sabendo que algumas cicatrizes não desaparecerão. A tragédia que atinge o trio central não é narrada com sentimentalismo, mas com uma precisão quase cirúrgica — em um capítulo ousado, escrito em segunda pessoa e presente contínuo, Zevin não apenas espelha a dinâmica dos jogos de tiro, mas captura a experiência íntima da impotência, da perda e da persistência cega que define tanto os jogadores quanto os sobreviventes. É nesse momento que a obra atinge sua maturidade mais contundente: ao fundir forma e sentido de maneira indissociável, Zevin revela que, na arte — como na vida —, as escolhas são reais, mesmo quando os finais são imutáveis.
Longe de se contentar com a nostalgia fácil ou o fascínio tecnológico, “Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã” afirma-se como uma poderosa meditação sobre as forças invisíveis que nos fazem continuar jogando, mesmo diante da certeza do fracasso e da perda. Zevin, consciente de sua posição de “gamer de toda a vida”, recusa tanto o saudosismo quanto o cinismo: seu olhar é o de quem compreende que cada nova criação, cada nova amizade, cada novo amor — mesmo que fadado à imperfeição — é, em si, um ato de resistência contra a erosão do sentido. Como seus personagens, que persistem em inventar universos que desafiem o esquecimento, Zevin oferece ao leitor não um refúgio, mas uma convocação: viver, amar, criar — e, apesar de tudo, apertar “start” outra vez.