“Enquanto Agonizo” tem alta potência poética e estrutural. O romance de William Faulkner opera um corte profundo na tradição narrativa ocidental. Cada personagem da família Bundren tem um idioma próprio, uma forma precária, rudimentar, meio primitiva, eu diria, de organizar a dor. A travessia do corpo da mãe pelos caminhos enlameados do Mississippi dissolve qualquer ilusão de linearidade. O tempo escorre em espiral, a consciência se fragmenta e a linguagem tropeça sobre si mesma. A arquitetura do romance é feita de ruído, hesitação, vertigem.
A nossa conversa sobre esse livro — que, a despeito de não ser o melhor, é o meu favorito de Faulkner — será guiada por uma frase: “minha mãe é um peixe”. Vardaman, o filho mais novo, escreve isso (pensa em fluxo) no seu capítulo-chave. Uma sentença curta, sem verbos auxiliares, modulação, explicação. Essa frase condensa a lógica da infância, a experiência do luto e a explosão da metáfora em estado bruto. A imagem do peixe ocupa o lugar da mãe morta. A imagem surge como substituto imediato, real, tátil, sem intermediação simbólica. A partir desse núcleo, vamos explorar três movimentos do romance: a infância como enunciação radical, a narrativa como território da falência linguística e a metáfora como corpo de linguagem que sangra. “Enquanto Agonizo” realiza, com essa frase, sua mais alta e desoladora invenção metafórica: metáfora, o recurso linguístico que me fascina e é minha obsessão, que me uniu a Proust e me levou a Ricoeur.

A sentença “minha mãe é um peixe” suprime, omite conectivos, rejeita o encadeamento lógico da língua. É uma estrutura mínima, elementar, carregada de peso semântico. A escolha pelo presente do indicativo, seco, direto, impõe uma equivalência absoluta entre duas entidades que, no plano racional, não se relacionam. Não há modulação, gradação ou explicação. A linguagem se torna colisão. Vardaman pensa com o corpo, com a urgência de um afeto que não encontra passagem pelas vias do discurso adulto. O pensamento infantil, ainda livre das hierarquias do logos, cria sua própria sintaxe do espanto.
Essa frase é o marco do colapso. A morte da mãe, evento que escapa à nomeação direta, encontra formulação. “Minha mãe é um peixe” instala o absurdo como verdade. Paul Ricoeur, em “A Metáfora Viva”, analisa esse tipo de construção como uma colisão entre semânticas heterogêneas. O que se dá é uma criação de sentido novo, “nova pertinência” que emerge do inesperado. O enunciado infantil gera uma perturbação categorial: quebra a cadeia lógica que sustenta a relação entre sujeito e predicado e funda uma outra realidade. A metáfora é isso: fundação.
Em “Tempo e Narrativa”, Ricoeur aprofunda essa ideia ao mostrar que a metáfora altera o tempo da linguagem. No caso de Vardaman, o trauma não permite elaboração progressiva. A frase atua como um corte, um salto sobre o vazio da dor. Ela substitui o objeto da ausência por outro nome, como quem precisa nomear algo para que continue existindo. O signo ocupa seu lugar. Essa substituição é a chave da ruptura. Trata-se de afirmar o que ela passa a ser. A lógica da identidade cede à lógica da imagem. E é nesse deslizamento que a linguagem revela sua falha — e sua potência.
Vardaman enxerga o mundo a partir de um regime de metamorfoses. Ele ainda não aprendeu a separar a morte da vida e, por isso, não a teme. Para ele, tudo se transforma. Gente vira peixe, mãe se torna carne, pensamento se realiza como imagem. É uma lógica própria, anterior à linguagem abstrata, que antecipa a razão. A sentença “minha mãe é um peixe” marca uma gênese: revela a gramática brutal da infância, onde a dor se exprime com desenhos concretos e o impossível se torna real por contiguidade. Nesse regime de percepção, o mundo se organiza por categorias e choques de semelhança imediata.
A infância, em Faulkner, é lugar de radicalidade expressiva. Vardaman narra sem filtro, apaga a ordenação causal ou os amarres cronológicos. Seus pensamentos surgem em fluxo bruto, anterior à lógica, mais verdadeiros que qualquer tentativa de tradução adulta. É ele, o mais novo dos Bundren, quem mais se aproxima de uma estética narrativa moderna. Chegam através de sua voz a memória, o discurso e principalmente a presença: presença de uma consciência em estado nascente, formulando o mundo enquanto ele se desfaz. A infância funciona como técnica literária de ruptura.
Quando diz “minha mãe é um peixe”, Vardaman também diz: “minha mãe fede”. Se a linguagem infantil se dá por imagens diretas, corpóreas, vemos essa hipótese viva aqui. O corpo da mãe, em decomposição, no romance, atrai urubus. A associação com o peixe é visual, tátil, olfativa. Há algo de cruel na frase, apelo seco, inapelável. A imagem aponta e denuncia, sem timidez para ferir o pudor dos leitores. Vardaman nomeia o horror sem rebuço, porque ainda não aprendeu a recuar diante dele. Sua metáfora foge da poética no sentido clássico: é anatômica. Nomeia o que vê, cheira e escapa. A infância, em Faulkner, é um rasgar da existência.
A literatura de Faulkner se aproxima da vertigem lírica de Joyce e das dissoluções visuais do surrealismo. O fluxo de consciência, fragmentado e sensorial, aproxima-se do sonho, com um peso material que o torna mais vívido que qualquer delírio. Vardaman imagina ao perceber. A infância funciona como um canal de acesso a um mundo sem intermediação simbólica. Como nos delírios de “Finnegans Wake” ou nas imagens automáticas de Breton, o que surge na voz de Vardaman é uma experiência em estado bruto, um pensamento que ainda não se curvou às normas da linguagem adulta.
O peixe carrega uma duplicidade simbólica: é cadáver e criatura. Representa o corpo da mãe em decomposição e evoca uma entidade viva, alheia ao mundo humano. Peixe não chora, não fala, nem sepulta. Vardaman associa a mãe ao peixe por vizinhança material. O corpo que apodrece deixa de ser pessoa. O animal frio e mudo aparece como figura exata para uma presença que se tornou apenas volume, peso e cheiro. A metáfora nasce sem ornamento: mais que escolha estilística, é reflexo de uma percepção direta do corpo como resto.
Essa imagem exclui qualquer transcendência. O peixe de Vardaman não remete ao Cristo, nem à regeneração. Não há milagre, nem há céu. O peixe é o avesso do que a mãe foi, é o que ela se torna quando o nome não basta, quando o afeto não alcança. A metáfora desfigura a lembrança e a fé. Apaga o rosto, instala uma máscara fria e escorregadia. O que resta da mãe é lembrança, agora tornada forma degradada. A linguagem, física demais, abre mão de uma ponte com o sagrado e finca o olhar no abjeto.
O caixão carrega uma presença simbólica. O peixe, uma presença física. O primeiro representa o rito, a tentativa de manter a dignidade da morte. O segundo afirma o colapso. O peixe é mais real do que o caixão, mais concreto do que o próprio luto. A imagem do animal ultrapassa a função da metáfora. Deixa de ser figura para ser substância. O que Faulkner esculpe com essa frase é uma nova espécie de símbolo: sem transcendência, beleza ou redenção. Um símbolo sem alma. A matéria pura da perda.
A frase “minha mãe é um peixe” aparece em uma das passagens mais brutais do romance. A família Bundren tenta atravessar o rio Mississippi em uma carroça improvisada. O caixão, precariamente amarrado, cai na correnteza. A água carrega o corpo, a tampa se solta, o cadáver rola entre pedras, lama e gravetos. O cenário é de dilaceramento físico, de colapso simbólico. A morte da mãe já havia ocorrido; o que se vê agora é a falência do ritual, a destruição da dignidade do corpo, a impossibilidade do luto. Enquanto o corpo escorre rio abaixo, Faulkner entrega ao leitor uma sucessão de monólogos tensos, longos, febris. Todos os personagens tentam dar conta da cena. Todos, exceto Vardaman.
No capítulo reservado à sua voz, há apenas uma linha: “minha mãe é um peixe”. Nada mais. Nenhuma descrição da travessia, comentário sobre o acidente ou tentativa de organizar a experiência. Enquanto os outros elaboram, Vardaman reduz. Os adultos, que também gozam de lucidez, buscam lógica e justificativa, enquanto ele fixa a imagem. A frase consome a cena toda; é um triunfo absoluto da mais ousada metáfora. Substitui o corpo em decomposição por uma figura simples, concreta, inassimilável. Ao fazer isso, Vardaman transforma a linguagem em cemitério. A frase abre mão de explicar e prefere sepultar: a morte vira cheiro, odor de podridão — como queiram.
“Enquanto Agonizo” é um romance em estado de decomposição. Sua estrutura fragmentária, composta por monólogos internos, alterna múltiplas vozes, cada uma com seu tempo, seu ritmo, sua sintaxe. A unidade narrativa desaparece. Não há narrador onisciente ou centro. Cada personagem oferece uma versão mutilada dos acontecimentos: visões incompatíveis, lembranças contraditórias, tempos quebrados. A narrativa se organiza como um cadáver que ainda pulsa. Os capítulos se sobrepõem, atritam, desintegram.
O romance avança por ruído de vozes. Cada uma traz um esforço para lidar com a experiência da morte, mas nenhuma consegue capturá-la. A linguagem falha, escapa, implode. Faulkner constrói o livro como quem monta uma carroça mal-amarrada: tudo parece prestes a cair. A travessia dos Bundren é uma travessia textual. A paisagem desfeita do sul dos Estados Unidos é menos geográfica do que sintática. A lama do caminho é também a lama da linguagem: é o luto do corpo, é o luto da forma.
O capítulo de Vardaman condensa toda essa técnica. Uma única frase concentra o fracasso da narração tradicional. Onde se esperava descrição, análise, emoção, Faulkner entrega um corte seco. A força do livro está nesse gesto: dizer o essencial sem poder dizer nada. A frase é o ponto em que o romance deixa de contar uma história e passa a expor seu próprio colapso. O livro abandona a construção de um sentido, deixando esse sentido à deriva, como o corpo no rio.
A falência da linguagem é o verdadeiro enredo. Tudo o que o romance encena (a morte da mãe, a peregrinação, a degradação da família) serve à exposição de uma impossibilidade: a de narrar a perda com coerência. A travessia é uma viagem, mas sobretudo uma marcha sobre palavras esfareladas. Carrega-se um cadáver; com ele, a ruína de qualquer discurso que pretenda organizar a dor. A frase de Vardaman diz o que o livro inteiro tenta sustentar: a linguagem acompanha, emoldura tudo, até o inefável, até quando falha.
A frase “minha mãe é um peixe” permanece porque é irresolúvel. Nenhuma leitura a esgota, nenhuma teoria a domestica; permanece suspensa. O romance inteiro parece trabalhar contra ela e, ao mesmo tempo, girar em torno dela. Cada voz tenta refazer o mundo, restaurar o sentido, montar os cacos de um enredo esfarelado. Ao fim, o que fica é a frase: cravada no meio do texto como lápide sem nome — dura, seca, desolada.
“Enquanto Agonizo” foi publicado em 1930 e escrito, segundo William Faulkner, em seis semanas. Diz a lenda que ele próprio criou, sem que uma única palavra tenha sido revista. Gosto dessa mentira. É a mesma que adota o meu amigo Pettras Felício, poeta dos bons e dos raros, quando diz que escreve seus poemas direto, como quem sonha de olhos abertos, e não volta atrás, nem toca mais ou mexe uma vírgula. Faulkner e Pettras compartilham o vício de mentir sobre os seus processos criativos. Mentem, claro. Mas perdoamos porque, no que mais importa — na obra — dizem apenas a verdade. “Enquanto Agonizo” é um “tour-de-force” sem concessões. O título vem do “Livro 11” da “Odisseia”, de Homero, quando Agamenon, morto, diz a Odisseu: “Enquanto eu agonizava, a mulher com olhos de cão não fechava meus olhos…”. Tudo o que está no romance está nesse eco homérico: a recusa do consolo, o gesto brutal do abandono, a descida aos infernos sem a bênção final do gesto amoroso.
Li “Enquanto Agonizo” muitas vezes, em quatro traduções: a de Wladir Dupont, densa, suja, de beleza abrupta; a de Hélio Pólvora, mais lírica, de construção fluida; a de Ana Maria Chaves, portuguesa, de 2004; e uma edição portuguesa raríssima, traduzida por Alfredo Margarido, ofertada a mim há muitos anos por Euler Fagundes de França Belém, jornalista e amigo — o maior leitor que conheci em qualquer lugar onde vivi: no Rio, em São Paulo, em Goiás —, a quem ofereço e dedico este trabalho. É a melhor tradução em língua portuguesa. Recebi esse exemplar como herança: um livro que carrego como objeto de estudo e extensão da memória de alguém que lê com o corpo inteiro.
Talvez “O Som e a Fúria” seja uma obra mais perfeita, “Luz em Agosto” mais sólida, plena, consciente da própria estrutura. Mas “Enquanto Agonizo” é o meu livro de Faulkner. É o que me pertence — e a quem pertenço. Nele, vejo a literatura como forma radical de ferir e de pensar: um romance que me leu antes de eu ter idade para lê-lo. Não me apaixonei por ele; fui apanhado. Ele me tomou como quem toma uma febre.
Guardo essa leitura como um trauma precioso. Faulkner, para mim, começa ali: um menino que fala pouco e crava no papel uma verdade insuportável. Nenhuma frase me paralisou tanto ou exigiu tanto silêncio. Lembro-me de interromper a leitura, na primeira vez, apenas para repetir como mantra, como riso nervoso que interrompeu a leitura o dia todo e ficou maquinando em mim: “minha mãe é um peixe. Minha mãe fede. Minha mãe fede. Minha mãe fede, minha mãe…”.
E sigo, porque há livros que não terminamos: eles terminam por nós. “Enquanto Agonizo” não é o maior romance que li, mas é um dos que mais amei, um dos que mais me feriu ou quis reler para tentar entender, e o que mais me obrigou a aceitar que há frases que não se explicam. Só se repetem, como uma perda, um cheiro, um nome esquecido que ainda nos persegue na carne.