Muita coisa já foi escrita atrás das grades. Muita coisa digna de uma fogueira, é verdade (lembremos do “Mein Kampf”, da autobiografia de Mussolini ou dos poemas de Saddam Hussein), mas também muita Literatura — aquela com o “L” maiúsculo. Os casos são inúmeros. Cervantes indica no prólogo de “Dom Quixote” que o escreveu na prisão, “donde toda incomodidad tiene su asiento y donde todo triste ruido hace su habitación”. Ezra Pound compôs alguns de seus melhores “Cantos” enquanto estava detido numa base militar americana na Itália por sua velha simpatia ao fascismo. Richard Lovelace produziu o seu famoso poema “To Althea, from Prison” na Prisão de Gatehouse, onde estava detido por suas atividades monarquistas durante a Guerra Civil Inglesa. Oscar Wilde escreveu “De Profundis” enquanto cumpria pena por “indecência grave”, a capitulação penal que abrangia a homossexualidade. Boécio — para citar um filósofo —, condenado por conspirar contra o rei Teodorico, escreveu “A Consolação da Filosofia” no corredor da morte.
A lista continua… passando por nomes que vão desde São Paulo Apóstolo até o Marques de Sade, que enrolava o manuscrito de doze metros de “120 dias de Sodoma” e o escondia entre as pedras da sua cela na Bastilha para que os guardas não o aprendessem. Muitas dessas obras dificilmente teriam sido escritas se seus autores não tivessem parado na prisão. Em uma entrevista de 1995, o poeta Bruno Tolentino, que cumpriu pena por tráfico de drogas na prisão de Dartmoor, na Inglaterra, avaliou a experiência de forma positiva, com tom de saudade, já que foi graças a ela que encontrou inspiração para escrever a sua famosa “Balada do Cárcere”. Nas suas palavras: “Prenderam um esteta e soltaram um poeta!”.
Apesar disso, na introdução à balada, o poeta não deixa de advertir que a solidão da cela “é produtora de linguagem ou de desespero”. Graciliano Ramos parece ter experimentado a segunda opção. Nas suas “Memórias do Cárcere”, escritas muitos anos após a sua soltura, o autor relata várias vezes como era difícil escrever qualquer coisa devido à náusea provocada pela falta de higiene da cela e pela comida estragada, recorrendo ao conhaque e ao cigarro para afastar a fome. A maioria dos detentos enfrenta a mesma dificuldade, provavelmente. Mas como fica o caso dos presos que experimentam — ou que ao menos julgam experimentar — a “solidão produtora de linguagem”? E, mais do que isso, como fica o caso dos que desejam publicar o resultado desse ócio criativo? Isto é, presos podem publicar livros? É isso o que o STF terá de decidir.
Contudo, a questão não é tão aberta quanto o título deste texto — à semelhança da maioria das notícias veiculadas na mídia — pode sugerir. O caso concreto que chegou ao Supremo diz respeito a um preso que cumpre pena na Penitenciária Federal de Campo Grande pelo homicídio de um policial penal. Ele produziu um manuscrito literário de mais de mil páginas e tentou entregá-lo ao seu advogado em 2019 para que fosse publicado, mas foi impedido pela administração penitenciária, que recolheu o material.
O advogado solicitou que o setor de inteligência do presídio avaliasse o material e, posteriormente, não havendo nada de errado, o entregasse diretamente a ele. No entanto, a administração penitenciária indeferiu o pedido, dentre outras razões, porque “o custodiado pode estar se respaldando deste subterfugio a fim de passar recados para seus colegas em liberdade, por meio de códigos não detectados”. A administração aduziu ainda que “o apenado não enviou, à Divisão de Reabilitação (DIREB), requerimento solicitando autorização para redigir tal conteúdo literário”. Assim, concluiu que o manuscrito ficará sob custódia “até que o requerente seja definitivamente excluído do Sistema Penitenciário Federal”.
Alegando, essencialmente, violação à liberdade de expressão, o causídico acionou o Judiciário. Na sua petição, foi citado o caso do traficante “Marcinho VP”, também preso no sistema federal, que conseguiu autorização para entregar ao seu advogado o livro que havia escrito (a obra foi publicada e está à venda em livrarias de grande circulação).
O pedido foi indeferido em primeiro e segundo grau sob a justificativa de que nenhum direito fundamental é absoluto, podendo a liberdade de expressão ser limitada em prol da segurança pública. No acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região foi citado, ainda, o art. 161, § 1º, do Manual de Assistências do Sistema Penitenciário Federal, que estabelece que mesmo após a análise da divisão de inteligência, “é vedada a entrega do material aos familiares, amigos ou advogados dos presos”.
Pela via recursal (“Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.470.552/MS), o caso foi parar na mesa do Ministro Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que acabou reconhecendo que envolve matéria constitucional e que tem repercussão geral — requisitos para que seja julgado pela Corte.
Dizendo de outro modo, o Ministro reconheceu, em primeiro lugar, que a questão diz respeito à suposta violação ao “art. 5°, incisos IV e IX, da Constituição Federal, os quais asseguram a livre manifestação do pensamento e a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E em segundo lugar, que a matéria tem grande relevância social e jurídica, pois “irá orientar a maneira de proceder dos agentes do Estado em relação aos estabelecimentos prisionais do País”, repercutindo, portanto, em todo sistema prisional brasileiro. O julgamento ainda não foi pautado.
Esse breve histórico que acabamos de fornecer constitui o resultado de uma prática — lamentavelmente em extinção nos veículos de mídia — que pode ser descrita como “compulsar os autos” ou, simplesmente, “ler os autos”. E esse exercício fabuloso nos levou a tecer algumas considerações, ou melhor, três.
Em primeiro lugar, não se trata de uma questão valorativa, moral. A retenção do manuscrito pelo presídio foi fundamentada exclusivamente em questões de segurança. Vale dizer, conforme a justificativa da penitenciária e as decisões judiciais pretéritas, a limitação da liberdade de expressão do preso não se deve ao fato de ser imoral permitir que alguém que cometeu um crime — ou está sendo acusado de cometê-lo — dê vazão às suas pretensões literárias e, eventualmente, lucre com a publicação do resultado. Tanto é assim, que a penitenciária não fez nenhum juízo de valor sobre o conteúdo da obra (a respeito do qual não há nada nos autos) ou sobre a possibilidade de lucro com a publicação. Portanto, a discussão é diferente da que ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, em 2018, quando Curtis Dawkins, condenado à prisão perpétua por homicídio, assinou um contrato de 150 mil dólares com uma editora para publicar os seus contos. O Estado de Michigan alegou que o valor deveria custear os gastos de sua manutenção no cárcere. Em Nova York, há uma lei específica regulando a matéria. A “Son of Sam law” proíbe que os apenados lucrem com os seus crimes, o que inclui a publicação de livros. Essa lei já foi usada, por exemplo, contra Mark David Chapman, o assassino de John Lennon.
Em segundo lugar, as questões de segurança pública não são irrelevantes, muito pelo contrário. É fato notório que o sistema penitenciário federal abriga pessoas presas por crimes mais graves e muitas delas são faccionadas, ostentando, inclusive, posições de liderança. Nesse contexto, são corriqueiros os casos de presos que tentam, de forma dissimulada, enviar mensagens extramuros nas reuniões com seus advogados ou durante as visitas íntimas (que acabaram sofrendo restrições). Assim, não é absurdo supor que um detento, a título de ser o novo Camões, pretenda enviar uma série de mensagens cifradas em versos decassílabos heroicos e sáficos.
Em terceiro lugar, em que pese a consideração anterior, é escandalosamente inconstitucional (!) a norma do art. 161, § 1º, do Manual de Assistências do Sistema Penitenciário Federal, que estabelece a retenção do manuscrito mesmo que a divisão de inteligência não encontre nenhuma irregularidade. No caso específico que chegou ao Supremo, como já mencionado, a penitenciária nem sequer se deu ao trabalho de apontar em que parte do texto, supostamente, há alguma mensagem cifrada. É natural que atuem dessa forma, pois, pela sistemática da norma em vigor, tanto faz se, de fato, “tem caroço nesse angu”. No fim das contas, tudo ficará retido do mesmo jeito.
Trata-se, portanto, de um procedimento apriorístico que parte da premissa de que sempre haverá alguma irregularidade e, portanto, o manuscrito será, invariavelmente, retido. Isso retira a possibilidade do preso que, de forma sincera, escreveu um romance, um conto ou um poema, de ter o seu escrito publicado. Ninguém está falando para as pessoas saírem comprando os livros publicados pelos detentos, ninguém está elogiando o seu conteúdo, ninguém está nem sequer avaliando se isso tem realmente alguma utilidade para o processo de ressocialização. A nossa única afirmação é que a retenção imotivada do manuscrito é inconstitucional, pois viola, de maneira desarrazoada, o direito à livre manifestação do pensamento e à livre expressão da atividade intelectual ou artística, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IV e IX, da Constituição Federal). Não custa lembrar que a eficácia vertical dos direitos fundamentais vincula todos os entes estatais — inclusive a administração penitenciária. O Estado só pode limitar um direito fundamental se tiver uma excelente justificativa e isso deve ser feito de forma fundamentada, até mesmo para possibilitar o controle jurisdicional dos atos administrativos.
No entanto, caso se constate que realmente há alguma mensagem cifrada — e a divisão de inteligência deve ter ampla discricionaridade para fazer essa avaliação —, aí sim o manuscrito poderá ser retido, incinerado, queimado, o diabo. Por isso, é necessário conceder um prazo razoável para que as autoridades possam fazer a análise do material (no caso que será julgado, o advogado do preso, de forma muito razoável, incluiu isso no seu pedido).
Esse procedimento já vale para as correspondências. De acordo com o art. 124 do Manual de Assistências do Sistema Penitenciário Federal: “Todas as correspondências, recebidas e enviadas, serão analisadas pela Divisão de Inteligência da Penitenciária Federal e, caso o conteúdo apresente texto, objeto, temas dissimulados/ocultos ou substância que ameace à segurança pública, a disciplina prisional ou a ordem jurídica serão retidas para as medidas cabíveis”.
Ora, por que não aplicar essa mesma sistemática aos manuscritos literários? Seria a solução mais razoável. Assim, do alto da nossa condição imaginária de “amicus curiae”, esperamos que o Supremo leve em conta tanto a liberdade de expressão como as questões atinentes à segurança pública e estabeleça critérios seguros a serem seguidos pelo sistema prisional, de modo que eventuais retenções sejam baseadas em fundamentos reais e não em considerações apriorísticas suscitadas por normas escandalosamente inconstitucionais.