Há momentos em que a função de criticar o cinema exige mais do que apenas destreza analítica — exige também uma resistência quase obstinada ao coro das aclamações. E, quando se trata de “Anora”, esta resistência se faz mais pungente. O novo filme de Sean Baker, disfarçado de fábula sobre uma stripper russo-americana que vislumbra uma improvável ascensão social, opera não como uma obra espontânea, mas como uma engrenagem meticulosamente ajustada para agradar jurados e colecionadores de estatuetas. O que poderia ser uma exploração crua e vibrante de um universo à margem acaba tensionando os limites do artifício, numa tentativa evidente de ser grande — e, por isso, resvala na superficialidade do que quer parecer ousado.
O que Baker havia tocado com acerto em “Red Rocket”, ao desnudar uma América decadente, perde força aqui, por excesso de cálculo. “Anora” revela uma Nova York partida: de um lado, os ambientes onde a luz de néon disfarça a sordidez, e de outro, a aridez silenciosa das ruas, captada com precisão pela câmera de Drew Daniels. É nessa fronteira entre fantasia e miséria que Ani transita, dançando para homens cuja idade denuncia mais que poder — expõe o tédio de quem consome corpos com a mesma displicência com que troca moedas. E é nesse cenário que surge Ivan, jovem herdeiro cuja imaturidade não compensa o luxo que ostenta.
A relação entre Ani e Ivan, concebida como eixo dramático da narrativa, falha em construir tensão real. Suas interações oscilam entre a monotonia e o clichê, numa sucessão de encontros que simulam paixão, mas carecem de fricção emocional. As cenas que deveriam consolidar a conexão entre os dois se perdem em diálogos que roçam o banal e em momentos de sensualidade que não transcendem o ilustrativo. A obsessão em retratá-los como almas perdidas que se encontram termina por esvaziá-los — são mais caricaturas de amantes do que personagens densos.
A virada dramática se anuncia com a entrada de figuras que representam a força implacável do dinheiro e da tradição. Toros, o enigmático gestor dos negócios da família, encarna a autoridade clerical que não hesita em intervir, ainda que sob a máscara da religião. Ao seu lado, capangas que mais do que intimidar, ilustram a extensão do poder familiar. É nesse ponto que o filme finalmente encontra algum vigor, especialmente nas trocas entre Ani e Toros, marcadas por uma ironia que tensiona a narrativa, enfim, resgatando o interesse do espectador.
A metamorfose de Ani de objeto de desejo a figura resistente é o que oferece alguma redenção ao roteiro. Madison, em sua interpretação, encontra o equilíbrio entre o encanto ilusório e a dureza forjada pela sobrevivência. Sua atuação, embora convincente, não atinge o patamar de genialidade que justificaria o reconhecimento desmedido que recebeu. E Baker, por mais que demonstre talento visual, entrega um filme que, ao pretender ser uma síntese do humano e do social, se torna refém de suas próprias ambições.
“Anora” deixa a sensação incômoda de algo incompleto: um esboço de crítica social revestido por uma estética sedutora, mas incapaz de transgredir de fato. O filme brilha nos momentos em que abandona a pretensão e se permite o sarcasmo sutil, mas fracassa quando tenta ser épico. A coroação recebida no Oscar parece, assim, mais fruto de uma maquinaria disfarçada de cinema independente do que de uma celebração genuína da arte que, por vezes, precisa ser menos perfeita para ser mais verdadeira.
★★★★★★★★★★