Na rigidez cerimonial que envolvia o Reino Unido no alvorecer do século 19, a autoridade patriarcal era uma muralha intransponível, sustentada por um pacto silencioso de obediência, mesmo quando os alicerces dessa ordem social mostravam sinais de apodrecimento moral. Jane Austen, figura inquieta e de inteligência arguta, jamais se limitou a retratar as frivolidades do cotidiano aristocrático. Ao contrário, sua escrita impôs-se como um bisturi afiado, desnudando as contradições e ambiguidades da vida social de seu tempo. De “Razão e Sensibilidade” à densidade sutil de “Orgulho e Preconceito”, o que se vê é uma tensão perene entre os desejos do indivíduo e as exigências implacáveis da sobrevivência material, temperada por uma crítica velada à transação matrimonial como moeda de valor social. Austen não narrava apenas histórias de amor; arquitetava investigações sofisticadas sobre o peso do status, o verniz da honra e a volatilidade dos afetos num mundo regido por convenções.
É nesse percurso que “Persuasão” se estabelece como ponto terminal, não apenas de sua produção literária, mas de uma trajetória existencial interrompida precocemente por uma enfermidade enigmática. A morte de Austen, aos 42 anos, encerra uma das vozes mais perspicazes da literatura inglesa, mas não esgota a capacidade de sua obra provocar revisitações e novas interpretações. Whit Stillman, ao aventurar-se pela adaptação de “Lady Susan”, propõe-se a iluminar uma faceta menos explorada dessa autora: sua veia satírica, quase clandestina. “Amor & Amizade” não é mera reconstituição; é uma reinterpretação aguda da lógica social que Austen tão bem conhecia, filtrada pela lente da irreverência. O resultado é uma narrativa que, ao rir-se das manobras sociais, revela sua gravidade disfarçada, denunciando a sobrevivência como um ato de manipulação refinada.
No centro dessa intriga, Susan Vernon desponta não como vilã, mas como estrategista num tabuleiro hostil. A viuvez a empurra ao limiar da irrelevância social, obrigando-a a orquestrar novos vínculos não por sentimentalismo, mas por necessidade crua. O casamento, para ela, é apenas mais uma jogada – e Frederica, sua filha, uma peça incômoda que precisa ser sacrificada ou moldada aos seus intentos. Não há heroísmo, tampouco vitimismo: há cálculo. A interpretação precisa de Kate Beckinsale sublinha essa duplicidade, enquanto Morfydd Clark dá vida à resistência silenciosa da juventude encurralada. Os homens, figuras cômicas ou alheias, compõem o pano de fundo ideal para o desfile de intenções ocultas. Sir James Martin, tragicômico em sua ingenuidade, e Alicia Johnson, com sua vocação para desestabilizar o previsível, completam esse jogo social onde cada gesto carrega implicações sutis e devastadoras.
Stillman molda sua versão de “Lady Susan” como uma alegoria mordaz, cuja leveza não escapa ao rigor estético. A fotografia de Van Oosterhout, com sua paleta oscilante entre o calor e o cinismo, e a direção de arte que captura a atmosfera de um mundo que se equilibra entre a sofisticação e a ruína moral, constroem um palco em que os personagens transitam como marionetes conscientes de seus fios. “Amor & Amizade” transcende, assim, o papel de mais uma evocação do universo Austeniano. Trata-se de uma celebração crítica, não reverente, do gênio literário que, mesmo dois séculos após seu desaparecimento, segue impondo sua presença incisiva. Na iminência das comemorações por seus 250 anos de nascimento, a autora se revela ainda mais viva, não apenas pela permanência de seus textos, mas pela capacidade que estes possuem de se reinventar diante de novos olhares, sempre desafiando o leitor a decifrar os enigmas da conveniência e da aparência.
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