Antes do arroz e feijão: o que realmente era a base da alimentação no Brasil antigo?

Antes do arroz e feijão: o que realmente era a base da alimentação no Brasil antigo?

Imagine a cena: uma tarde abafada, o cheiro de terra molhada subindo do chão, o som ritmado de mãos espremendo raízes sobre uma grande gamela de madeira. Não há panela de pressão, nem fogão de seis bocas — mas há comida. E muita.

Antes do arroz e do feijão dominarem os pratos brasileiros, era assim que a fome se saciava: com mandioca. Muita mandioca. Cozida, ralada, assada, transformada em farinha, em mingau, em pão. A raiz áspera, que hoje tanta gente associa à comida de boteco, era o pilar silencioso da alimentação dos povos indígenas que habitavam o que viria a ser chamado de Brasil.

A mandioca era tudo: pão, bolo, mingau, farinha, pirão. Era versátil como poucos ingredientes no mundo conseguiram ser. Triturada, espremida, torrada ou cozida, servia para alimentar aldeias inteiras em épocas de fartura e de escassez. A farinha de mandioca, especialmente, era tão importante que, em certas regiões, funcionava quase como moeda de troca.

A raiz áspera, que hoje tanta gente associa à comida de boteco, era o pilar silencioso da alimentação dos povos indígenas

E pensar que, para os europeus recém-chegados, aquela raiz parecia estranha, quase uma curiosidade botânica… Alguns cronistas do século 16, com suas penas ansiosas e olhos desconfiados, registraram a mandioca como “pão da terra”. E era isso mesmo. Para os tupis, os guaranis e tantos outros povos originários, a mandioca era pão, era carne, era vida.

Mas, ah, não era só isso. Outros alimentos completavam o cardápio dos primeiros brasileiros: milho, batata-doce, abóbora, peixes de rio, frutas silvestres de nomes lindos e gostos difíceis de descrever em palavras rápidas — jabuticaba, araticum, araçá. Um banquete que vinha da mata, dos rios, do quintal.

Com o passar dos séculos, novas influências chegaram. Vieram o trigo, o gado, a cana-de-açúcar — com eles, vieram também hábitos alimentares que pouco a pouco redesenharam nossos pratos. A mandioca, que já fora rainha, passou a dividir espaço com o arroz trazido pelos portugueses e cultivado com o suor de milhões de braços africanos escravizados.

Curioso, não? A gente fala de “comida brasileira” como se fosse uma entidade eterna, imutável. Mas a verdade é que, como tudo neste país de rios que mudam de curso, a cozinha também foi feita de encontros, perdas, adaptações silenciosas. A mandioca resiste — está lá no tacacá, no pão de queijo, no pirão à beira-mar — mas foi preciso um bocado de luta, um bocado de amor, para que não se perdesse no tempo.

Hoje, quando mordemos uma tapioca recheada, quase sem pensar, repetimos um gesto milenar. Quando mergulhamos a farinha no caldo do peixe, sem cerimônia, estamos tocando, ainda que de leve, a história profunda deste chão.

É bonito pensar nisso. Talvez a verdadeira base da alimentação brasileira não seja exatamente o arroz, o feijão ou a mandioca. Talvez seja outra coisa: a capacidade de transformar o que temos em algo que alimenta não só o corpo, mas também a memória.