Exercendo esse ofício quase marginal de crítico de cinema, já me habituei a ir contra a corrente, mas admito que, em certas ocasiões, o incômodo é maior do que eu mesmo supunha. Este é o caso de “Anora”, o furacão de Sean Baker, sobre uma jovem stripper (e garota de programa) russo-americana que um efêmero conto de fadas ao tornar-se a obsessão do filho pródigo de um oligarca russo. Baker foi muito feliz ao deslindar uma face da indústria do entretenimento adulto no ótimo “Red Rocket” (2021), onde preenche quase todos os espaços com crítica social corajosa, inclusive à fina flor do lixo branco da América, de onde saiu Donald Trump. É claro que o diretor-roteirista não tem a menor obrigação de meter o bedelho nas lambanças dos poderosos em todos os seus trabalhos — e nem conviria que o fizesse —, o ponto é outro. Tem-se a impressão avassaladora de que “Anora” é um filme pensado para ganhar prêmios, saindo-se melhor que a encomenda na tarefa, como todos sabemos. Eu, de minha parte, gosto da premissa, mas acho que Baker estica demais a corda.
Como toda cidade grande, Nova York pode ser um excelente lugar para se viver, desde que se tenha dinheiro. Anora, ou Ani, como ela também se apresenta, flutua de um para outro mundo, passando as noites no palco de uma boate frequentada por homens de boas condições financeiras (quase todos, pelo menos), para, pouco depois do alvorecer, voltar ao casebre humilde do subúrbio, dividido com uma colega não muito amistosa. O diretor marca essa diferença enchendo de luz néon rosa o ambiente de trabalho de sua protagonista, recurso que parece ainda mais sedutor em contraste com o tom esmaecido das ruas de manhã cedo, uma mágica da fotografia certeira de Drew Daniels.
Anora esfrega-se em sujeitos que poderiam ser seus avós, além de quarentões que ela também considera passados, os dias se sucedem, ela não nutre ilusão alguma quanto ao futuro e enquanto ela conseguir encher o biquíni de dólares tudo estará sempre bem. Sua sorte começa a virar no momento em que Ivan Zakharov, um aspirante a playboy e estroina profissional, fica sabendo que há uma dançarina que fala russo — na verdade, ela mais interpreta que fala. E então começam os problemas com o longa.
A aproximação entre Anora e Ivan tarda a engrenar, e Baker vai preenchendo as lacunas com cenas de sexo elegantes que apenas insinuam, mas que deixam claro que ela domina um assunto em que ele ainda engatinha. A esse propósito, embora Mikey Madison e Mark Eydelshteyn sejam bons atores, Ani e Vanya formam um dos casais mais irritantes da história do cinema; a necessidade de estarem felizes todo o tempo, emulando a falsa satisfação de acharem um no outro o que buscavam, estraga muito do que o enredo reserva para o segundo ato, depois que os dois trocam alianças numa daquelas capelas especializadas em casamentos instantâneos de Las Vegas.
Madison é hábil em esconder as vulnerabilidades de Anora com o fascínio pela montanha de presentes caros que recebe do agora marido, que sequer se importou em comunicar sua nova extravagância aos pais. Quem se encarrega de tomar as medidas que poderão dissolver o casamento é Toros, um pope da Igreja Ortodoxa que cuida dos negócios da família Zakharov na América, junto com Garnik e Igor, os capangas interpretados por Vache Tovmasyan e Yura Borisov.
O esforço quanto a vencer o tédio é recompensado com as boas sequências nas quais Toros mostra que será uma pedra no sapatinho de cristal de Anora antes mesmo de estar cara a cara com a esposa de Vanya. Os dois começam a se estranhar já por telefone, numa chamada em viva-voz de comicidade inaudita, mas eficiente, e quando estão todos na mesma sala, afinal, a narrativa dá a guinada pela qual o espectador ansiava. Na pele de Toros, Karren Karagulian assume a figura de um vilão ameaçador o suficiente para afugentar Vanya, que abandona Anora à própria sorte.
Madison convence ao personificar uma anti-heroína tarimbada na arte de sobreviver com unhas e dentes (e isso não é uma metáfora), compondo com Borisov o verdadeiro casal da trama, depois, outra vez, de uma tardança excessivamente dilatada. Baker é um cineasta de talento, sem dúvida, e Madison, uma atriz promissora, contrariando a voz cava da patuleia ao escancarar a dura vida fácil de garotas como Anora, seu primeiro personagem de fôlego depois de revelada por Quentin Tarantino em “Era Uma Vez em… Hollywood” (2019). Mas tenho de confessar que, ao cabo de tanta propaganda, esperei bem mais do escolhido pela Academia como melhor filme no Oscar 2025. Outrossim, Madison não deveria ter levado agora o prêmio de Melhor Atriz, pelo papel-título, e Sean S. Baker saiu-se melhor que a encomenda, mas não a ponto de merecer as estatuetas de melhores Direção e Roteiro Original.
★★★★★★★★★★