O grande vencedor do Oscar 2025, com cinco estatuetas, sob demanda no Prime Video Divulgação / FilmNation Entertainment

O grande vencedor do Oscar 2025, com cinco estatuetas, sob demanda no Prime Video

Sean Baker é um diretor que sabe onde pisa. Em “Anora”, seu olhar não escorrega na armadilha da caricatura nem se rende ao sentimentalismo de vitrine. Ele estrutura sua narrativa como quem arma uma armadilha de veludo: sob o verniz cintilante da primeira hora, esconde um mecanismo implacável, pronto para esmagar ilusões. A trajetória da personagem-título — stripper no limiar do cansaço, mulher ainda jovem que aprendeu a sobreviver à base de esperança racionada — começa como um flerte com a fantasia contemporânea: o encontro casual com um herdeiro bilionário russo, o namoro relâmpago regado a champagne, uma cerimônia improvisada em Las Vegas e, por fim, a promessa de ascensão social reluzente. Mas é justamente esse conto de fadas em estéreo que Baker decide sabotar, degrau por degrau, até o espectador perceber que está preso no mesmo labirinto que a protagonista.

A encenação do filme é milimetricamente coreografada para refletir essa armadilha. O primeiro ato é leve, embalado por luzes pulsantes, diálogos espirituosos e uma estética que flerta com a comédia romântica. É uma falsa calmaria, que mascara a brutalidade estrutural prestes a aparecer. A partir do momento em que os holofotes se apagam e os personagens são obrigados a lidar com as consequências de seus atos, a narrativa muda de tom: desacelera, endurece, fere. O brilho se esvai, e o que resta são silêncios longos, olhares opacos, tensões não verbalizadas. Essa mudança de ritmo não indica descompasso — é o próprio comentário de Baker sobre a ressaca da opulência, o desconforto inevitável que recai sobre os que nunca puderam brincar de gastar o que não têm.

É nesse ponto que o filme escancara seu projeto maior: desmontar não só o mito da mobilidade social instantânea, mas também a própria ilusão de que os privilegiados estão disponíveis ao diálogo. Ivan, o jovem oligarca, é pintado com todas as cores da alienação: generoso na embriaguez, pueril no afeto, inepto diante da pressão. Seu entorno — especialmente a mãe, uma figura de gélido autoritarismo — revela a verdade que ele nunca soube articular: ele não é livre. É um dente bem polido na engrenagem de uma família que opera como empresa. Quando sua mãe entra em cena, basta uma frase para que o príncipe encantado desmorone, reduzido à condição de peão obediente. Essa exposição abrupta é conduzida com uma precisão quase antropológica — e para quem conhece o comportamento da elite russa, soa como algo mais profundo do que verossimilhança: soa como confissão.

Ao redor desse núcleo plutocrático, orbitam figuras que sustentam o mundo invisível. Anora é o fio condutor, mas Baker constrói um quarteto de personagens ordinários — Igor, os pais, os amigos — todos marcados pela resiliência silenciosa de quem aprendeu a existir nos bastidores da festa. Igor, em especial, emerge como uma força que contrasta radicalmente com Ivan: ele não fala muito, não ostenta nada, não promete nada. Mas no momento crucial, oferece algo raríssimo — tempo, escuta, presença. Quando ele se ajoelha, em um gesto que poderia soar como paródia se viesse de outro personagem, o que se vê é um pedido que carrega o peso do mundo real: sem joias, sem artifício, sem espetáculo. É nesse gesto que o filme encontra seu ápice emocional, não porque sugira uma solução romântica, mas porque afirma que a ternura ainda é possível mesmo após a devastação.

A interpretação de Mikey Madison dá corpo a essa revelação. Há em seu trabalho uma entrega emocional que recusa ornamentos: ela chora como quem não pode mais se controlar, não porque a narrativa exige, mas porque a personagem, enfim, colapsa diante do primeiro gesto de cuidado genuíno. O choro não é por ter perdido um status; é por, finalmente, ter sido reconhecida. Anora não busca salvação — ela só quer não ser apagada. E o filme, ao se recusar a tratá-la como símbolo ou metáfora, dá a ela algo que quase nunca se dá aos invisíveis: centralidade, dignidade, espessura.

O roteiro pode, em momentos íntimos, escorregar em diálogos que não sustentam a densidade emocional que a cena exige. Mas essa fragilidade é compensada pela força interpretativa do elenco. A atuação do grupo oscila entre o naturalismo cru e a contenção estratégica, compondo uma paisagem humana que se aproxima do documental. O retrato que se desenha das figuras armênias, russas e marginalizadas nos EUA foge do estereótipo e, ao mesmo tempo, acerta na precisão de traços culturais que dificilmente são capturados com tanto rigor por cineastas ocidentais. Baker não inventa essas figuras — ele escuta, observa, transcreve. E esse cuidado se reflete em cada detalhe: da escolha dos figurinos à forma como os personagens reagem ao poder, passando pela linguagem corporal herdada de contextos muito específicos.

No fundo, o que “Anora” escancara não é apenas o abismo entre ricos e pobres, mas o sistema de castas invisível que define quem tem o direito de sonhar. Ao mostrar o colapso da fantasia sob o peso das estruturas oligárquicas — sejam elas russas, americanas, chinesas ou indianas — o filme denuncia um modelo que se sustenta na performance dos miseráveis e na alienação dos abastados. E ao fim, o que sobrevive não é o amor romântico, nem a esperança de um milagre social — é a persistência de quem continua andando, mesmo depois de ser deixado para trás.

Porque Anora não é sobre vencer. É sobre continuar existindo depois que tudo que parecia promissor se revelou uma farsa — e, ainda assim, não desaparecer.

Filme: Anora
Diretor: Sean Baker
Ano: 2024
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★