Bong Joon-ho não é apenas ousado — ele opera com a destreza de quem não teme confrontar o espectador com as fissuras mais profundas da sociedade. Em “Mickey 17”, o cineasta coreano reinventa os próprios códigos, ampliando o escopo de sua crítica social sem abdicar da sutileza narrativa. A trajetória de Bong já havia se consagrado com o feito histórico de “Parasita”, mas é aqui que ele volta a reafirmar, de modo inquietante, que os abismos entre classes sociais não são meros acidentes históricos, e sim estruturas meticulosamente perpetuadas. Se “Parasita” lançou luz sobre as sombras da desigualdade urbana, “Mickey 17” projeta essa escuridão sobre um planeta gelado, onde a vida humana se torna apenas mais um recurso descartável. O filme, inspirado no romance “Mickey7” de Edward Ashton, não apenas carrega o DNA temático do diretor, mas se eleva a uma nova complexidade, em que a ficção científica não serve como fuga, mas como espelho ampliado da brutalidade terrena.
O universo de “Mickey 17” dialoga com os contornos narrativos de “Expresso do Amanhã”, outro exercício de imaginação distópica de Bong, mas o faz com um senso de urgência renovado. Niflheim, esse cenário inóspito que precisa ser moldado ao gosto de quem tudo possui, torna-se palco para a exploração absoluta, onde a dignidade é um luxo inalcançável. O protagonista, Mickey Barnes, não é apenas um peão sacrificável, mas a metáfora viva de uma sociedade que normaliza a substituição do indivíduo por um simulacro funcional. A descoberta de que há sempre outro pronto para tomar seu lugar ressoa como uma crítica feroz ao descartável humano — corpos sem história, sem nome, sem futuro. A duplicidade de Mickey, quando confrontado com sua versão sucessora, rompe a linearidade e instaura um dilema ético devastador: o que significa existir quando sua própria identidade é replicável? Bong entrelaça esse impasse com a precisão de quem entende que o futuro distópico é, na verdade, o presente em disfarce.
A potência de “Mickey 17” não reside apenas em sua premissa, mas no modo como Bong manipula as camadas narrativas para subverter expectativas. A interpretação de Robert Pattinson, ao transitar entre a resignação e o sarcasmo, dá corpo a um personagem que se vê despido de qualquer ilusão de protagonismo sobre a própria vida. Naomi Ackie, como Nasha, amplia a dimensão emocional da trama, sem jamais ceder à sentimentalização fácil. E Mark Ruffalo encarna com um desconcertante realismo o poder cínico de quem manipula destinos à distância, blindado pela impunidade dos bilionários. Bong não apenas expõe o abismo, ele obriga o espectador a contemplar sua profundidade, sem concessões, sem anestesia. A crítica que se ergue contra a suposta “dureza” do diretor revela mais sobre a fragilidade de quem não suporta ser confrontado do que sobre o filme em si. “Mickey 17” é uma obra que incomoda porque reflete — e não há espelho mais incômodo do que aquele que nos mostra desumanos.
Este não é um filme que se enquadra confortavelmente em classificações, nem tampouco pretende oferecer resoluções. Ele persiste, ressoando, como uma ferida aberta que se recusa a cicatrizar. A brutal honestidade de Bong Joon-ho talvez não agrade aos paladares adestrados pelo conforto narrativo, mas sua relevância reside exatamente nisso: provocar o incômodo necessário, desorganizar as certezas, redefinir o que esperamos do cinema como arte e denúncia. Em “Mickey 17”, cada imagem, cada silêncio, cada fragmento de diálogo carrega o peso de um futuro que já se insinua no presente — e ignorá-lo seria um luxo que poucos podem se permitir. O cinema de Bong não busca agradar, mas transformar, e nisso reside sua força inquebrantável.
★★★★★★★★★★