Um romance sobre solidão e autoconhecimento que muda você por dentro — e vale cada segundo

Um romance sobre solidão e autoconhecimento que muda você por dentro — e vale cada segundo

Menino de 28 anos em 1845, Thoreau ergueu uma cabana às margens de Walden Pond para provar que a independência espiritual exigia, antes de tudo, uma faxina radical no excesso material. Quase dois séculos depois, um professor universitário abre em seu iPad o mesmo livro enquanto se recosta sob uma árvore, e uma ex-aluna já conta quatro releituras da obra, ainda perseguindo a serenidade que descobriu num lago distante da Califórnia. A cena, em chave pós-moderna, expõe a primeira contradição essencial de “Walden”: a simplicidade que ele exalta depende de redes complexas — de estradas de ferro a cadeias globais de microchips — para continuar circulando e convocando leitores a “sugar o tutano da vida”.

O paradoxo acompanha a obra desde o nascimento. O jovem Thoreau, herdeiro intelectual de Emerson, partiu para o bosque não para fugir da sociedade, mas para observá-la em close up, como um repórter enfiado na trincheira que pretende descrever. Por isso mantinha três cadeiras — “uma para a solidão, duas para a amizade, três para a sociedade” — e recebia, aos montes, crianças colhendo frutas, operários da ferrovia em folga e curiosos sedentos por um copo d’água. Hoje o lago virtual se multiplica em telas que piscam notificações; o leitor contemporâneo precisa de outro tipo de disciplina: contar não as moedas que gastou com farinha e melancia, mas os minutos de bateria que restam antes de o tablet silenciar, devolvendo-o ao silêncio original.

Essa tensão entre contenção e abundância atravessa também a biografia dos seus devotos. A professora que revisita Paraíso Perdido cinquenta vezes impressiona seus alunos ao exigir deles, no máximo, cinquenta páginas por noite; ela sabe, por experiência, que certas leituras formam lastro emocional semelhante ao que Thoreau buscava no lago. Quem relê “Walden” em intervalos regulares descobre, a cada retorno, um livro diferente: ora panfleto anticonsumista, ora manual estoico, ora crônica bem-humorada sobre feijoeiros e lenhadores irlandeses. Em todos os casos, contudo, persiste a mesma pergunta: quem, afinal, tem coragem de marchar no compasso de um tambor que só ele ouve?

Walden, de H. D. Thoreau (Edipro, 288 páginas, tradução de Alexandre Barbosa de Souza)

Essa coragem nem sempre nasce de epifanias bucólicas. Às vezes é forjada num ônibus escolar rumo à ostentação de Rodeo Drive, onde uma turma de secundaristas, levada por um professor de sandálias e ideias socialistas, deveria comparar o ascetismo de Concord ao luxo das vitrines. O plano saiu pela culatra: os adolescentes voltaram cabisbaixos, mesmerizados por carros cromados e anéis de diamante. Só um deles, tocado pelo “vórtice calmo” do texto, levaria Walden para outro lago — Horseshoe, no norte de Michigan — e ali gravaria suas iniciais numa bétula, como quem promete a si mesmo repetir a experiência de viver deliberadamente. Anos depois, esse mesmo leitor, alojado num estúdio em Manhattan, descobriria que a cidade também pode ser floresta: basta enxergar nos retângulos de vidro a mesma superfície reflexiva que Thoreau via na água.

A permanência do livro, portanto, não repousa em instruções práticas de autocontrole — que hoje soariam como tutorial de “life-hacking” —, mas na força narrativa de um experimento aberto, sempre reaplicável. Quem lê no papel amarelado carrega na mochila o rastro de árvores derrubadas; quem lê em e-ink ou LCD carrega o lastro de minérios raros e jornadas de trabalho extenuantes. Ambos, porém, repetem a mesma escolha fundamental: trocar a passividade consumista por uma atenção meticulosa às próprias engrenagens de desejo. O dispositivo — seja tomo encadernado, seja tela reluzente — torna-se, paradoxalmente, cronômetro da presença.

Essa dialética explica por que Walden coleciona adeptos recorrentes: a cada visita, o leitor mede o descompasso entre o ideal espartano do autor e a espiral tecnológica que o circunda. No século 19, a ferrovia encurtava distâncias e espalhava areia fina em taludes recém-cortados; hoje, a internet espalha bytes que recobrem a vista com um nevoeiro de comentários instantâneos. Thoreau desconfiava das notícias lidas por “velhas à hora do chá”; nós nos deixamos hipnotizar por timelines intermináveis. A lição permanece: consumir informação sem digeri-la é o oposto de viver deliberadamente.

Nenhum desses impasses impede que “Walden” continue fermentando gestos políticos. Da recusa em pagar impostos — fermento para a teoria da desobediência civil — às lutas de Gandhi e Martin Luther King, o livro forjou um vocabulário de resistência que sobrevive às mudanças de mídia. Transformado em aplicativo, audiobook ou texto tatuado na nuvem, ele ainda sussurra: “se o fim de todas as nossas invenções é apenas acelerar a chegada a propósitos triviais, talvez devêssemos repensar os meios”. O conselho ressoa tanto na cabana minimalista do Vale do Silício quanto no apartamento de 30º andar com vista para o Hudson, onde um leitor, cercado por poucos móveis, anota no bloco digital: “ler é datar uma nova era da vida”.

Assim, entre a madeira da velha impressora de Boston e o alumínio anodizado do iPad, “Walden” confirma seu lugar de ponte. Conecta gerações que, em contextos opostos, sentem a mesma vertigem diante do excesso e a mesma fome de essencial. Se Thoreau pôde financiar seu retiro com o excedente da economia que criticava, o leitor de hoje financia seus gadgets com a engrenagem global que denuncia — e, ainda assim, ambos podem encontrar no gesto de parar, observar e registrar o ponto de inflexão que separa repouso de resignação. Ler “Walden” continua sendo, afinal, mais do que abrir um livro: é colocar à prova, como num laboratório portátil, a possibilidade de viver com a atenção voltada para o que, de fato, importa.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.