Ao final da sessão, mesmo quem nunca se identificou com a música de Robbie Williams pode se ver afetado por uma sensação inesperada: respeito. Não por uma carreira pontuada por recordes ou reinvenções, mas por alguém que se recusa a maquiar as próprias ruínas. Em vez de moldar uma imagem palatável, o filme opta por desconstruí-la, e é justamente essa escolha que o torna raro.
Em um tempo em que as figuras públicas são moldadas a partir da lógica do branding, da simulação de perfeição e do controle de narrativa, “Better Man” confronta essa engrenagem e propõe algo radical: um artista disposto a perder o controle para recuperar sua verdade. Não se trata de autopiedade nem de redenção. Trata-se de uma entrega crua, por vezes brutal, que desfaz a distância entre palco e bastidor. E, ao fazer isso, resgata algo que há muito parece esquecido na cultura da celebridade: a coragem de ser apenas humano.
Essa é a essência da narrativa: não a reconstrução de uma trajetória, mas a exposição deliberada de suas rachaduras. O filme se posiciona não como um catálogo de sucessos ou uma linha do tempo melodramática, mas como um gesto radical de entrega — emocional, estética e narrativa. Há um desconforto latente que permeia cada quadro, uma espécie de tensão entre a memória e o presente, entre o homem que tenta se entender e o personagem que o mundo ainda insiste em enxergar.
Ao empregar a figura do macaco digital como alter ego do protagonista, o filme desarticula a noção de representação realista. Não há tentativa de humanizar pela semelhança, mas sim de alienar para revelar. É justamente na distorção que o espectador encontra a verdade. Essa opção, que poderia ser interpretada como excentricidade estética, se revela uma escolha conceitual precisa: o ídolo, desumanizado pela expectativa pública, ganha nova forma para recuperar algo que lhe foi negado — a subjetividade.
Mais do que contar uma história, o filme interroga os limites da identidade em um ambiente onde tudo é espetáculo. O popstar, desde os primeiros anos, foi moldado para agradar, performar e entreter, mas nunca para falhar. A cinebiografia desfaz essa lógica. Ao invés de exaltar conquistas, ela vasculha quedas, recusando o conforto das narrativas de redenção. Robbie, ali, não está em busca de glória, mas de entendimento — de si, de sua infância truncada, da fama que o engoliu, das pessoas que perdeu ao longo do caminho, e da solidão que, mesmo nos picos de sucesso, nunca deixou de acompanhá-lo.
É perceptível como o longa se afasta das armadilhas do gênero. Não há entrevistas de ex-managers emocionados, nem depoimentos de celebridades “amigas”. A voz que guia tudo é a dele — por vezes frágil, por vezes irônica, mas sempre honesta. A montagem respeita esse tom: salta entre lembranças, surtos, silêncios e confissões com uma fluidez que simula o pensamento — não linear, mas espiralado. O passado retorna como eco, não como linha reta. A memória não é um acervo organizado, mas uma sucessão de feridas abertas e cicatrizes mal curadas.
Ao eliminar o verniz da reverência, “Better Man” cria espaço para algo raro: a empatia sem idealização. O protagonista não se protege, tampouco se enfeita. Ao contrário, parece fazer da exposição o único caminho possível para sobreviver à própria imagem. O filme compreende que o real interesse do público não está em ver o artista como herói, mas em reconhecê-lo como alguém que também erra, que também desmorona, que também cansa. E é nesse desnudamento que reside sua força mais brutal.
Se há algo de profundamente perturbador no que se vê, é porque o longa não oferece respiro. A câmera, quase sempre estática, observa como quem testemunha — sem julgamento, mas com uma atenção implacável. Não há apelos sentimentais nem trilhas emocionais manipulativas. Há, isso sim, uma arquitetura formal precisa, que se recusa a edulcorar o desconforto. A coreografia solitária no meio da rua, o olhar perdido em um camarim vazio, o silêncio que acompanha a lembrança de uma overdose — tudo isso compõe um retrato que, ao invés de encantar, inquieta.
Esse não é um filme que visa conquistar plateias ou recuperar legados. Ele parece existir apenas para que seu personagem central possa, enfim, ser visto por inteiro — sem maquiagem, sem glamour, sem narrativa pré-aprovada. Ao abdicar da tentação de parecer “relevante” ou “comovente”, “Better Man” encontra sua relevância justamente no que tem de mais cru: a recusa em fingir. E é por isso que ressoa.
Ao apagar as luzes, o espectador não carrega uma melodia na cabeça. Carrega um silêncio. Um tipo de silêncio que incomoda, mas que também liberta. Porque, ali, por trás da fama, dos palcos e das manchetes, o que sobra é um homem tentando dar sentido à própria existência. Um homem falível, errático, mas finalmente dono da própria história. E talvez isso, no fim, seja mais revolucionário do que qualquer sucesso de venda ou recorde de bilheteria.
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