O melhor filme de 2025 acabou de estrear no streaming — e você precisa assistir Divulgação / Warner Bros.

O melhor filme de 2025 acabou de estrear no streaming — e você precisa assistir

Bong Joon-ho é um homem ousado. Poucos cineastas sabem como dizer verdades incômodas e fomentar discussões cada vez mais urgentes como o sul-coreano, que, merecidamente, adicionou ao currículo láureas a exemplo do Oscar de Melhor Filme por “Parasita” (2019), o primeiro longa de língua estrangeira a vencer nessa categoria, agraciado também com a Palma de Ouro de Cannes —  e fazia cerca de setenta anos que uma mesma produção não conquistava os dois prêmios máximos mais importantes do cinema. Se “Parasita” abriu os olhos do mundo para o que tem feito a indústria cinematográfica da Coreia do Sul, “Mickey 17” entra na equação como um catalisador dos novos desejos do público e do pensamento refinado do diretor, que nunca se furtou a tocar nas chagas expostas da humanidade desde muito antes da fama.

“Mickey 17” parece, aliás, uma fusão de “Parasita” com “Expresso do Amanhã” (2013), uma história sobre ultrarricos que bancam o fomento de pesquisas sobre a colonização de um outro mundo, no qual pobres são mais que desassistidos: são a escória que deve entregar sua vida sem nenhuma ilusão quanto a direitos humanos ou cobertura no noticiário. Bong situa sua nova distopia em Niflheim, um planeta gélido que precisa ser habitado por gente do couro grosso até que esteja apto a receber quem de fato interessa. O roteiro, adaptado de “Mickey7” (2022), de Edward Ashton, tem todos os elementos que consagraram Bong Joon-ho e, assim mesmo, não deixa de soar como uma grande novidade.

Depois de “Expresso do Amanhã” e “Okja” (2017), “Mickey 17” é o terceiro longa-metragem em língua inglesa do sul-coreano, e não é nenhuma obra do acaso que os três discorram sobre tópicos afins. Bong continua a falar de desigualdade social, de miséria, de ignorância, dos horrores que a falta de dinheiro acarreta na vida dos indivíduos e das nações; a uma apreensão ligeira, pode-se pensar numa comédia de costumes temperada com um quê de glosa sociopolítica acerca do desmonte institucional e ético que a extrema-direita vem perpetrando em Europa, França, Bahia e, por óbvio, na América; entretanto, não são necessários mais que quinze minutos para que se alcance a conclusão de que, feito na vida como ela é, aqui também tudo reveste-se de camadas mais e mais densas de reflexão prática, com uma história de apurada linguagem visual na superfície. No prólogo, Mickey Barnes aparece ofegante no interior de uma fenda glacial, aguardando pelo resgate.

Quando alguém parece vir em seu socorro, Mickey fica sabendo que não só não será removido como já existe uma sua cópia geneticamente irrepreensível prontinha para substituí-lo, Mickey 18. A partir desse epifania do personagem central, o diretor dá corpo à analepse que permeia toda a narrativa, mostrando Mickey dopado enquanto uma equipe de médicos e biólogos colhem seu DNA. Ele alistara-se para a excursão a Niflheim sem ler as letras miúdas, que determinavam que esse seria seu papel: viver e morrer ao talante dos colonizadores, que o expõem a vírus para os quais não há vacinas ou poluição tóxica. Uma vez que seu ciclo se esgota, ele vai parar naquele limbo do começo, onde é devorado por criaturas que lembram os monstros de “Duna” (1965), o clássico de Frank Herbert (1920-1986) vertido para o cinema por David Lynch (1946-2025) e Denis Villeneuve. Mas sua última reposição não sai como o esperado, e os dois Mickeys passam a dividir o mesmo ambiente.

Se “Mickey 17” se resumisse ao magnífico desempenho de Robert Pattinson, que transita admiravelmente da melancolia quase abúlica do personagem-título para o cinismo venenoso de seu sucessor, o filme já seria um achado. Insatisfeito como sempre, Bong cava brechas para incluir o romance de Mickey 17 com Nasha Barridge, a outra pobre-diaba vivida, por Naomi Ackie, e, o principal, mencionar o descaso dos poderosos com gente como eles, traduzido em Kenneth Marshall, o bilionário com aspirações políticas de Mark Ruffalo. Mais do que uma obra-prima acima de gêneros, este é um conto apocalíptico necessário e impiedoso, que dá às coisas seus verdadeiros nomes, doa em quem doer. A propósito, esta tem sido quase a única nota dissonante entre os críticos: a falta de tato, a “contundência” de Bong Joon-ho em “Mickey 17”. Concordo. Ser adulto tem se revelado um desafio para certas pessoas.

Filme: Mickey 17
Diretor: Bong Joon-ho
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama/Ficção Científica
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.