Em “Meu Pai”, Florian Zeller abandona qualquer tentação de explicar como é viver com demência e opta por uma experiência sensorial crua e desorientadora, na qual o espectador é empurrado para dentro de uma mente em colapso. O filme não se aproxima da doença para descrevê-la, mas para reproduzi-la — não com palavras, mas com a própria estrutura narrativa. Não há observadores externos aqui; estamos dentro da espiral, sem bússola ou aviso prévio, compartilhando o mesmo estado de desagregação psíquica de Anthony, vivido por Anthony Hopkins com uma intensidade que dispensa adjetivos.
Ao adaptar sua peça teatral para o cinema, Zeller não se limitou a converter diálogos em imagens. Ele subverteu o espaço dramático, criando um território onde o tempo se dilui, os objetos mudam de lugar e os rostos se tornam intercambiáveis. Cada cena contém rachaduras que só se revelam ao espectador atento: um detalhe que desaparece, uma memória que se contradiz, um personagem que surge com nova aparência sem qualquer aviso. O real deixa de ser confiável, não porque a trama o distorce, mas porque a lógica interna do protagonista está se esgarçando — e a câmera, cúmplice dessa deterioração, se recusa a estabilizar o que está ruindo.
Não há trilha segura. O espectador é induzido a desconfiar de cada elemento do filme, pois tudo é instável: a mobília do apartamento, a cronologia dos eventos, as versões da filha, dos genros, dos cuidadores. Anthony é engenheiro em uma cena, dançarino em outra. Ora lembra que sua filha vai para Paris, ora esquece que ela esteve presente. As elipses não marcam passagens de tempo, mas apagamentos. Nada está garantido — nem mesmo o que se viu há poucos minutos. A dúvida, antes incômoda, torna-se o único ponto fixo da experiência.
Essa vertigem seria insustentável se não estivesse ancorada na performance monumental de Hopkins, que interpreta a fragilidade com o orgulho de quem se recusa a ser tratado como inválido. Em vez de buscar empatia, o ator transita entre a delicadeza e a crueldade com o mesmo brilho nos olhos. Seu Anthony ora encanta com sua vivacidade sarcástica, ora fere com um desprezo brutal, como se estivesse testando os limites da realidade que já não reconhece. Não se trata de uma atuação em declínio — é um tour de force de alguém que compreendeu que a perda cognitiva não é ausência, mas excesso de ruído, sobreposição de fragmentos, um colapso sem silêncio.
Olivia Colman, como Anne, sustenta o contrapeso emocional do filme. Não há cena em que sua presença não revele o esgotamento silencioso de quem precisa manter a estrutura emocional em pé enquanto o chão cede. O filme nunca a vitimiza, tampouco a santifica. Em seu olhar — por vezes marejado, por vezes absolutamente exausto — reside o dilema de quem continua amando alguém que não mais a reconhece. Ela não exige reconhecimento, mas também não desiste de buscá-lo, mesmo que isso signifique se ferir repetidamente. É uma atuação que diz muito nos espaços entre as falas.
Zeller dirige como se coreografasse lapsos de consciência. Nada no filme é gratuito: os enquadramentos justapostos, as trocas sutis de atores, os diálogos que soam familiares e estranhamente deslocados. Até mesmo a trilha sonora — composta por peças que o próprio Hopkins aprecia na vida real — reforça a impressão de que não estamos assistindo a uma ficção, mas a uma memória contaminada por sentimentos conflitantes. E talvez por isso o filme seja tão devastador: ele não ilustra a desintegração de uma identidade, ele a convida para dançar.
A brutalidade de “Meu Pai” é não oferecer qualquer tipo de conforto ao espectador. Não há mensagens edificantes aqui. Anne foi para Paris? Paul existe? Quantas filhas Anthony realmente teve? A ausência de respostas não é uma falha, mas a própria estrutura da experiência que o filme nos impõe. Em vez de explicações, somos lançados à confusão sensível da perda — não como ausência pura, mas como distorção contínua daquilo que se pensava sólido. É um filme que não pede empatia, mas sim coragem: coragem para aceitar que a realidade pode escorrer entre os dedos, e que nem sempre há um nome certo para aquilo que se sente.
Não há um final, apenas um eco. Um velho, agora quase infantilizado, repete: “Quero minha mãe.” Não é uma cena de regressão, mas um lembrete aterrador: a identidade é uma construção tão frágil quanto a memória, e ambas podem desaparecer sem alarde. O que fica é a dúvida que o filme inscreve em silêncio — como resistir ao colapso quando até a dor perde seu contorno? Nesse abismo sem mapa, Zeller encontra uma linguagem que não pretende curar ou traduzir, mas simplesmente acompanhar. E isso, paradoxalmente, é o gesto mais humano de todos.
★★★★★★★★★★