Jean Reno vem dando uma pausa nos tipos obscuros que encarna tão bem para investir-se da figura de velhinho gente boa. Ao menos essa é a impressão que se tem diante de “Meu Amigo Pinguim”, um relato tão inaudito quanto doce acerca do vínculo entre um pescador algo amortecido depois de uma tragédia pessoal num passado remoto e um pinguim-de-magalhães, salvo de um derramamento de óleo e que uma vez por ano nada os mais de três mil quilômetros que separam a Patagônia da praia de Provetá, na Ilha Grande, litoral sul fluminense, para consolá-lo e manifestar-lhe sua gratidão.
Dizer que o catarinense David Schurmann mergulha nessa história é mais que um trocadilho. Filho de Vilfredo e Heloísa Schurmann, veteranos em expedições marítimas ao redor do mundo, o diretor sempre soube valorizar estilos de vida “exóticos”, o que acaba por colaborar em sua observação da amizade entre João Pereira de Souza e Dindim, como batizou o hóspede plúmeo, “interpretado” por aves de carne e osso em 80% dos 97 minutos, com a ajuda de um ou outro efeito digital. Quanto a João, Reno faz com que o personagem ganhe alma e contornos humanos para além de um sujeito casmurro que reencontra motivos para acreditar na vida, arrancando desse homem uma poesia quase sobrenatural.
Filmes com animais sempre hão de receber do público a imediata atenção que histórias sobre homens comuns e mulheres corajosas levam bons minutos para conquistar — exceção reservada às tramas sobre crianças-prodígio ou as que enfrentam doenças inexplicáveis, de que muitas vezes acabam não escapando. Nas raras vezes em que conseguimos esquecer, pelo espaço de um instante que seja, as muitas comodidades da vida pós-moderna e nos voltamos para o que pode haver de mais trivial na essência de cada um, encontramos no mais fundo de nosso espírito algumas das respostas pelas quais procurávamos há muito tempo, quiçá desde que abrimos nossos olhos à luz do mundo.
No primeiro ato, as roteiristas Kristen Lazarian e Paulina Lagudi Ulrich sublinham a aridez do João ainda moço vivido por Pedro Urizzi, a fim de contrapô-la a Dindim, vulnerável depois de chegar do extremo meridional do continente sul-americano e quase sucumbir a águas imundas. Schurmann não vai a fundo na morte de Miguel, o filho do personagem central com Maria, durante uma manhã de pesca em mar revolto, preferindo correr três décadas e mostrar João e a esposa vivendo sós numa choupana na praia. É aí que Dindim entra.
João tira o pinguim do oceano, remove-lhe a graxa, dá para o bicho quase todos os peixes que ele poderia comer e arrisca-se a colocar a perder o casamento, já que Maria não se conforma com toda aquela sujeira. Como no recente “Lobisomens” (2024), de François Uzan, Reno equilibra João entre uma ranzinzice não muito convicta e o maravilhamento de sentir que o mar de alguma maneira devolve-lhe o filho. Sem nenhuma pretensão, Adriana Barraza ratifica a ideia de vaivém emocional do protagonista, tão acostumado à perda e a derrota que nem se abala quando percebe que o intervalo entre as viagens de Dindim se estende cada vez mais. Na verdade, ele guarda para si a alegria de saber que Dindim pode ter arranjado uma parceira e que, portanto, a vida seguiu seu curso. João entendeu o recado.
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