Subestimado, filme com Boyd Holbrook e Ashton Kutcher é comédia sagaz e cheia de diálogos incríveis, na Netflix Divulgação / Focus Features

Subestimado, filme com Boyd Holbrook e Ashton Kutcher é comédia sagaz e cheia de diálogos incríveis, na Netflix

O que acontece quando um cético urbano decide explorar um território que só conhecia por estereótipos? “Vingança”, escrito, dirigido e protagonizado por B. J. Novak, parte desse embate geográfico e simbólico para construir algo muito mais complexo do que um simples exercício de sátira. Em vez de zombar das tensões entre o Texas rural e as elites costeiras americanas, o filme as disseca com uma lâmina afiada e desconfortável, revelando um tecido social costurado por mal-entendidos, cinismo e abandono. O riso, aqui, é frequentemente interrompido por uma pontada incômoda — não porque a piada falha, mas porque ela revela algo que talvez preferíssemos não enxergar.

A narrativa é conduzida por Ben Manalowitz, um jornalista nova-iorquino arrogante, cuja familiaridade com o mundo se limita a podcasts, ironias autoconscientes e uma fé inabalável em sua própria esperteza. Convocado por engano para o funeral de uma jovem com quem teve encontros casuais, ele aceita viajar ao interior do Texas — não por compaixão, mas pela oportunidade de transformar a experiência em um conteúdo palatável: um podcast sobre luto, culpa e conspirações provincianas. No entanto, conforme se embrenha naquele universo que julgava já decifrado, descobre que sua lente está embaçada. Nada ali se encaixa confortavelmente nas categorias que trouxe consigo.

O que se apresenta como uma investigação criminal sobre a suposta overdose de Abilene Shaw — tratada por sua família como assassinato — logo se revela apenas a superfície de um terreno mais movediço. O que está em jogo não é a resolução de um crime, mas a exposição de camadas morais, afetivas e sociopolíticas que um observador apressado jamais enxergaria. As figuras inicialmente caricatas — a mãe mística, o irmão impulsivo, o produtor musical que filosofa sobre propósito como se estivesse em um TED Talk — ganham espessura emocional e complexidade ética à medida que Ben é forçado a deixar o pedestal e caminhar, desconfortável, entre ruínas que ele ajudou a ignorar.

“Vingança” não oferece um mapa moral estável. O filme não se contenta em confrontar arquétipos: ele os desmonta. A família Shaw, por exemplo, poderia facilmente ter sido reduzida a um amontoado de estereótipos redneck. Em vez disso, Novak escava suas dores com cuidado quase antropológico, extraindo deles não um exotismo grotesco, mas uma humanidade bruta, digna de escuta. O protagonista, por sua vez, é submetido a uma lenta corrosão de certezas. A ironia — seu mecanismo de defesa mais eficaz — começa a falhar diante de um mundo onde as tragédias são reais demais para serem monetizadas.

A ambientação não serve como pano de fundo, mas como elemento narrativo central. O deserto texano, com suas paisagens amplas e desoladas, ecoa o vácuo simbólico que permeia a experiência contemporânea americana: um país imenso, repleto de vozes que não se escutam. A pobreza, nesse contexto, não é tratada como adorno dramático, mas como ferida aberta — não para ser exibida, mas para ser entendida. A câmera insiste em permanecer ali onde seria mais cômodo desviar o olhar. O que o filme evidencia é a falência de uma ideia de progresso que não alcança a maior parte da população. As conexões entre classes, regiões e culturas não são apenas frágeis — são praticamente inexistentes.

Ao operar como sátira cultural e comentário existencial, “Vingança” se aproxima de títulos como “Lar Doce Bar”, “Terra Selvagem” e “Nomadland”, mas troca o lirismo resignado por uma ironia melancólica. A América retratada por Novak é uma terra onde o ruído da performance digital abafou a escuta verdadeira. O protagonista, inicialmente empenhado em criar um “produto narrativo” a partir da dor alheia, vê seu projeto implodir diante da necessidade inadiável de reconhecer o outro como sujeito, e não como recurso narrativo. A “vingança” que dá título ao longa se desdobra, então, como desejo de justiça simbólica, de reparação afetiva, de reconhecimento mútuo.

A crítica à era digital não aparece como apêndice moralizante, mas como estrutura subterrânea que molda as ações, os silêncios e as dissonâncias dos personagens. As redes sociais — obsessivamente acessadas, temidas ou desprezadas — funcionam como espelho deformante da realidade. O julgamento se tornou instantâneo, e o arrependimento, um gesto de RP. Novak não se esquiva desse debate: ele o incorpora à estrutura narrativa, fazendo do podcast que Ben pretende gravar uma alegoria da própria vaidade contemporânea — uma tentativa de transformar complexidade humana em cliques e empatia performativa.

No elenco, a escolha dos intérpretes reforça o tom ambíguo e provocador da obra. Novak domina com precisão o arco de seu protagonista — de manipulador cínico a alguém que, mesmo sem redenção plena, se permite alguma vulnerabilidade. Boyd Holbrook entrega uma performance surpreendente, conferindo ao irmão de Abilene uma dignidade que transcende o estigma da impulsividade. Já Ashton Kutcher, em um dos papéis mais interessantes de sua carreira, aparece como um misto de guru pop e profeta quebrado, servindo de contraponto filosófico ao pragmatismo emocional do restante da trama.

Nos bastidores, a produção lida com questões estruturais que se refletem diretamente no ritmo e na tessitura dramática. A tentativa de amarrar múltiplas subtramas sob uma linha condutora clara esbarra em desequilíbrios narrativos que nem sempre encontram desfecho satisfatório. Embora se perceba o esforço em construir uma protagonista carismática, com presença marcante e certa ironia subjacente — papel que Kate Hudson cumpre com desenvoltura —, o entorno narrativo não oferece a mesma solidez.

O elenco de apoio, apesar de competente, opera dentro de limites estabelecidos por arquétipos excessivamente rígidos, o que limita a profundidade das interações. Os diálogos, por vezes engenhosos, se tornam prisioneiros de uma montagem que privilegia o dinamismo superficial em detrimento da densidade emocional. Há momentos de tensão autêntica, especialmente quando a série explora os bastidores da pressão midiática e das decisões corporativas, mas esses instantes são frequentemente diluídos por uma estética de showroom que prioriza a imagem à substância.

“Vingança” se apoia em paletas neutras e ambientes envidraçados que simbolizam tanto a transparência quanto o isolamento do poder. A mise-en-scène é meticulosamente calculada, com enquadramentos que reforçam o controle e a vigilância, em sintonia com a dinâmica corporativa que rege o clube. Entretanto, esse refinamento formal por vezes esvazia o impacto dramático: a série raramente se permite a dissonância, o ruído, o tropeço humano que faria da personagem central alguém mais acessível, mais falível, mais verdadeira.

Ainda assim, “Vingança” encontra força em sua premissa. A ideia de uma mulher ocupando o centro do jogo, não apenas como coadjuvante de uma narrativa masculina, mas como ponto focal de poder e controvérsia, é por si só um movimento relevante — ainda que a execução nem sempre atinja a potência crítica que promete. Quando ousa tensionar os limites do gênero esportivo com uma perspectiva de bastidores femininos, a série revela lampejos de algo mais ousado, mais raro. Mas são apenas lampejos.

O que “Vingança” oferece é um produto elegante e funcional, que compreende os códigos de sua plataforma e os utiliza com eficiência. Porém, ao escolher o caminho da segurança estética e narrativa, abre mão de se arriscar em direções que poderiam de fato ressignificar sua proposta. Fica a sensação de um ponto de partida bem calculado, que ainda não se converteu em jogo plenamente jogado.

Filme: Vingança
Diretor: B.J. Novak
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Mistério/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★