O homem vaga pelo mundo ansiando pelos milagres de que não é digno, ao passo que tenta desvencilhar-se dos obstáculos que ele mesmo ergue ao longo de sua jornada. Misturando-se ao caos da vida enquanto se devota a ocultar os opróbrios que recordam-no de sua condição tão miserável, o gênero humano a muito custo dribla as tragédias que o perseguem sem cessar, lidando mal com o desconforto de saber que por mais longe que chegue, conquistando os reinos em que gostosamente se perde, realizando os sonhos que o condenam a uma existência artificiosa, não há de se livrar nunca dos fantasmas que incrustam-se-lhe na alma feito o marisco na pedra.
Enredos com um fundo moralizante, de onde espera-se que o público tire lições para sua vida — por mais que todos saibamos muito bem que cada um sente suas próprias dores sozinho, ainda que diante do mundo inteiro —, fazem relativo sucesso justamente graças à maneira como de uma premissa individual chega-se, guardadas as medidas das coisas, a inferências universais, cujo alcance vai muito além do óbvio. À safra de filmes cristófilos, que ganharam cartaz a partir de “O Impossível” (2012), levado à tela por J.A. Bayona, junta-se o brasileiro “Inexplicável”. A história banal de um garoto de oito anos que se depara com a morte vira um conto sobre a importância de crer no que escapa à lógica pelas mãos de Fabrício Bittar, atento às reviravoltas que dotam seu filme de ritmo e beleza.
Como todas contingências de que o homem desfruta e contra as quais flagra-se numa guerra encarniçada, tentando se libertar e cada vez mais enredando-se em seus fios, igual à mosca na teia da aranha, o destino tem virtudes e máculas de que se gosta ou se desgosta em maior ou menor proporção, despertando assim reações as mais imprevisíveis a depender de quem atinja. A adaptação de Bittar e da corroteirista Andrea Yagui para “O Menino que Queria Jogar Futebol” (2018), livro do paraibano Phelipe Caldas, prima por destacar a glória e a desdita de Gabriel Montenegro Varandas, um menino como qualquer outro, mormente no Brasil. Gabriel é um jogador de futsal que tem tudo tornar-se o novo Falcão, como se assiste nas primeiras sequências de “Inexplicável”. Yanna e Marcus observam-na da arquibancada, driblando um, dois, até chegar triunfante ao gol, embora disfarce uma incômoda dor de cabeça que já o torturava há alguns dias. Quando não suporta mais e vai ao chão, principia o calvário dos três, em busca de um diagnóstico, e no momento em que ele vem, claro, nenhuma prece aplaca a frustração, a tristeza, a ira. O desalento.
Gabriel tem um meduloblastoma, junto com o glioblastoma uma das modalidades mais agressivas de câncer no cérebro, e então “Inexplicável” passa a um drama de família calcado nas experiências bastante pessoais do protagonista, sedado em boa parte dos 116 minutos, e os dois adultos na sala, uma mais serena e o outro quase sempre a um passo do abismo. Miguel Venerabile cativa no prólogo e no desfecho, quando tem a oportunidade de voltar à ternura de Gabriel, nessa ocasião grato pela chance de ter sobrevivido, ao passo que Eriberto Leão se sai bem na pele do sujeito durão e cético que talvez até nutra uma crença qualquer, mas é vencido pela imagem cruel de um filho à morte. Entretanto, é Letícia Spiller quem concentra o espírito de fé e religiosidade que Bittar sublinha todo o tempo, tomando por referência a pena de Caldas. Pelo que se vê na última cena, na qual aparecem os Varandas para além da ficção, essa é mesmo uma família abençoada.
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