Há lugares onde a criminalidade não é apenas uma ocorrência — é uma herança. “Atração Perigosa”, dirigido e protagonizado por Ben Affleck, escava justamente esse território: não o do assalto em si, mas o da tradição que o sustenta. O bairro de Charlestown, em Boston, torna-se o campo simbólico onde a violência e a sobrevivência travam um duelo mudo e íntimo, sustentado por códigos não escritos e por lealdades que operam como algemas. A cidade, longe de ser mero cenário, pulsa como uma entidade — feroz, entrincheirada, quase mitológica em sua obstinação pelo ciclo da repetição.
No centro dessa engrenagem, Doug MacRay (Affleck) representa a fratura interna de quem pertence a um mundo que já não tolera, mas do qual não consegue escapar sem romper consigo mesmo. Liderando uma quadrilha de assaltantes meticulosos, Doug carrega o esgotamento de uma rotina construída em torno do disfarce: esconder-se da polícia, esconder-se dos amigos, esconder-se do espelho. A aparente frieza de suas ações esconde uma exaustão moral, amplificada pela figura explosiva de James Coughlin (Jeremy Renner), companheiro de crimes e sombra que insiste em lembrar a Doug que não há redenção sem deserção — e deserções, em Charlestown, cobram alto.
É nesse ponto de tensão que surge Claire (Rebecca Hall), ex-refém de um dos assaltos e, inadvertidamente, catalisadora do colapso que se aproxima. O envolvimento entre os dois não funciona como romance tradicional, mas como detonador psicológico: Claire representa o que Doug nunca teve — um vislumbre de uma vida possível, desatrelada da ancestralidade do crime. O vínculo entre eles cresce, não pela paixão em si, mas pelo contraste que ela introduz: enquanto ele conhece cada viela escura da cidade, ela simboliza as saídas que ele nunca explorou.
Affleck recusa o didatismo e a sedução do glamour criminoso. Seu foco está menos na adrenalina dos assaltos e mais na implosão lenta dos personagens. A câmera se detém no concreto das ruas, nas marcas do tempo nos rostos, nos gestos que revelam mais do que as falas. Boston é filmada como se fosse uma extensão emocional dos protagonistas — suas pontes, seus becos e suas fachadas carregam o peso das escolhas mal feitas, da inércia social que aprisiona com mais força do que qualquer cela.
A moralidade que estrutura o filme opera em zonas cinzentas. Doug não é idealizado, tampouco é apresentado como um rebelde incompreendido. Sua trajetória é construída à base de pequenas fissuras: não é a culpa que o move, mas a constatação de que ele se tornou alguém que despreza. O espectador torce por ele, mas não pelo apagamento de seus crimes. Há um desconforto calculado nessa ambiguidade — um convite a refletir sobre a diferença entre fuga e transformação.
Jeremy Renner, por sua vez, inscreve Coughlin como um corpo em constante atrito: instável, intenso, visceral. Sua presença carrega a energia de um pavio sempre aceso, e sua fidelidade a Doug soa menos como amizade e mais como pacto selado no desespero comum. Renner alcança um nível de entrega rara, expondo um personagem que, ao contrário de Doug, já cruzou a linha sem retorno. Não há arrependimento — apenas a percepção aguda de que o mundo fora do crime lhe foi negado antes mesmo que pudesse desejá-lo.
O elenco de apoio não apenas sustenta a narrativa, mas expande suas nuances. Pete Postlethwaite surge como figura espectral, quase um totem da velha guarda criminosa que dita regras com a autoridade dos que conhecem os becos como livros sagrados. Blake Lively, em um papel arriscado, desconstrói a própria imagem ao habitar uma persona dilacerada pelo vício e pela carência — sua presença desconforta e enriquece a tensão. Já Jon Hamm, como o agente federal Adam Frawley, encarna uma face menos idealizada da lei: determinado, mas também contaminado pela arrogância de quem acredita ter legitimidade para manipular o jogo em nome da ordem. Ele não persegue apenas criminosos; persegue o controle absoluto da narrativa.
A força do filme não reside na inovação da trama — os contornos do enredo seguem uma lógica familiar dentro do gênero. Mas Affleck demonstra precisão ao organizar esses elementos sob uma ótica emocionalmente densa. Não há reviravoltas mirabolantes nem discursos redentores: o que há é uma espécie de intimidade árida, onde cada personagem parece carregado de cicatrizes que não se veem, mas se sentem. Essa contenção é o que torna “Atração Perigosa” tão eficaz — ele não busca encantar, busca corroer.
No lugar de grandes sentenças sobre certo e errado, o filme oferece pequenos gestos de humanidade comprometida. Um olhar hesitante, um silêncio no telefone, um carro que não parte — são nesses interstícios que se desenha o drama real. O assalto ao banco, o tiroteio e a fuga são apenas pretextos narrativos para escavar a verdade mais dolorosa: em certos contextos, a escolha pela decência não é heroica, mas quase impossível. E quando ocorre, vem sempre tarde demais para desfazer o que já se petrificou.
Affleck dirige como quem conhece o terreno em que pisa — não apenas geograficamente, mas espiritualmente. Ele compreende a linguagem não dita da masculinidade ferida, dos códigos de rua e da violência herdada. Seu mérito não está em apontar saídas, mas em iluminar as grades invisíveis. “Atração Perigosa” é, assim, menos um thriller sobre ladrões e mais um tratado silencioso sobre a fadiga de ser o que o mundo espera que se seja. Uma história de homens que, mesmo armados até os dentes, já perderam a guerra antes de atirar o primeiro tiro.
★★★★★★★★★★