“O Sabor da Vida” não se organiza em torno de reviravoltas ou clímax previsíveis, mas sim como um lento ritual de intimidade, em que o afeto se expressa com a mesma dedicação com que se tempera um molho ou se escolhe o ponto exato de uma carne. O diretor Anh Hung Tran não propõe uma história no sentido habitual do termo: ele convida o espectador a habitar um espaço onde o tempo se estica, a palavra cede lugar ao gesto e o amor se traduz pela repetição meticulosa de ações que, para olhos distraídos, talvez pareçam triviais. Nada é banal aqui. Tudo é escolha, ritmo, entrega.
A sequência inicial, com seus mais de trinta minutos dedicados exclusivamente à preparação de refeições, é menos uma introdução do que uma imersão — e não apenas no universo culinário. Trata-se de um prelúdio coreografado com precisão artesanal, em que o vapor que escapa das panelas, os sons secos das lâminas sobre as tábuas e o tilintar suave das colheres compõem uma partitura de intimidade partilhada. A câmera não se limita a registrar: ela dança entre os utensílios e os corpos, assumindo um olhar quase cúmplice da rotina que se repete não por inércia, mas por um pacto tácito de afeto e confiança. Há uma reverência absoluta ao gesto bem executado — não por virtuosismo, mas por respeito ao tempo, ao ingrediente e ao outro.
No centro desse universo de concentração e calor encontram-se Eugenie (Juliette Binoche) e Dodin (Benoît Magimel), dois personagens que não vivem um romance nos moldes esperados, mas sim uma parceria sutil e densa, costurada por décadas de convivência silenciosa. Não há tensão explosiva, tampouco grandes declarações: a relação entre eles é composta de sinais mínimos e lealdades constantes, que escapam da gramática usual do amor. Ela é cozinheira; ele, seu patrão e amante. Mas essas definições, logo se percebe, dizem pouco. O que os une não se deixa catalogar — é uma dança sem música, um pacto sem promessas, sustentado pela partilha diária de um ofício que também é modo de vida.
As negativas reiteradas de Eugenie diante das propostas de casamento de Dodin não soam como recusa ao sentimento, mas como um modo de afirmar uma liberdade delicada, construída na interdependência não possessiva. Ela não deseja subverter a lógica do relacionamento — apenas preservá-lo em sua forma mais íntegra. Essa escolha, longe de ser um gesto de distanciamento, reafirma a natureza única do laço que compartilham. Em uma época em que tudo exige rótulo, o filme resiste: sua força está justamente em afirmar que nem todo amor precisa caber em uma definição.
É nesse campo silencioso e rigoroso, onde se cozinha com os olhos e com a memória, que a estética do filme encontra seu ponto de ebulição. O preparo dos alimentos não é mera alegoria: é presença, corpo, sensualidade. Cada ingrediente tem personalidade. Cada prato, um ritmo. E a câmera parece entender isso melhor que qualquer discurso. A ausência de artificialidade é tamanha que o espectador não assiste a uma simulação: os atores de fato cortam, mexem, provam, sujam as mãos. O resultado é uma experiência que ultrapassa a tela — uma espécie de liturgia profana em que o alimento, mais do que nutrir, afirma vínculos, reinscreve lembranças, convoca afetos. Para quem observa, o fogão deixa de ser um objeto funcional e se transforma em altar íntimo, onde o amor é cozido em fogo brando, sem alarde.
A aparição de Pauline (Bonnie Chagneau-Ravoire), menina de paladar apurado e sensibilidade precoce, rompe a aparente estagnação daquele microcosmo sem provocar ruído. Ao contrário: ela insinua continuidade. Em sua figura, o filme sugere a transmissão silenciosa de um legado — não por ensinamentos explícitos, mas pelo convívio, pela partilha não verbal do saber. A relação entre Eugenie e Pauline é mais que didática: é testemunhal. A cozinheira não instrui; ela inspira, molda pelo exemplo. Assim, a figura da menina funciona como ponte entre o passado e um futuro que ainda não se nomeou. O ciclo da vida se insinua não como ruptura, mas como perpetuação de um modo de estar no mundo.
Mas é na fragilidade que ronda as últimas partes do filme que ele encontra sua camada mais profunda. A saúde vacilante de Eugenie, os olhares longos de Dodin, a insistência em preservar rituais mesmo diante do desgaste físico — tudo aponta para uma consciência aguda da transitoriedade. A preparação das refeições, nesse contexto, não é mais apenas celebração do sabor: torna-se um esforço de permanência, uma tentativa de fixar no tempo aquilo que escapa. Cozinhar é, também, resistir ao esquecimento. E amar, aqui, se revela como o gesto radical de aceitar que o outro não é eterno — e mesmo assim, ou justamente por isso, dedicar-lhe o melhor de si, todos os dias, sem alarde.
Não há concessões ao apelo fácil. O filme recusa a ansiedade do entretenimento veloz, apostando na construção paciente de um ambiente onde o tempo é respeitado, onde a repetição não entedia, mas ritualiza. O prazer está no detalhe, no esmero, na constância. E é essa constância que nos desarma. Quando o filme termina, não há catarse — há um silêncio que reverbera. O espectador não sai com respostas, mas com uma espécie de fome: de delicadeza, de presença, de tempo vivido com inteireza.
“O Sabor da Vida” não é um conto sobre gastronomia ou sobre amores impossíveis. É um tratado sensível sobre como o cuidado cotidiano pode ser, ele mesmo, uma forma de eternidade. Em um mundo marcado pela pressa e pelo descartável, o filme propõe um antídoto raro: a contemplação do gesto contínuo como forma de amar. E talvez não haja herança maior do que essa.
★★★★★★★★★★