Relatar um encontro entre dois homens em trajes papais poderia facilmente render uma narrativa engessada por solenidades ou reduções didáticas. Mas o que Fernando Meirelles propõe em “Dois Papas” é algo mais inquietante: um estudo de contrastes emocionais travestido de conversa diplomática, onde cada frase carrega o peso da história e o conflito de convicções. Ao dramatizar os bastidores da renúncia de Bento 16 e a ascensão do Papa Francisco, o filme constrói uma arena discreta, mas intensamente simbólica, onde tradição e renovação não se enfrentam como inimigas, mas como dilemas internos que disputam espaço no mesmo corpo institucional — e, sobretudo, humano.
Anthony McCarten, roteirista com notável trajetória em adaptar figuras históricas complexas, transforma a trama em um território de vulnerabilidades cuidadosamente reveladas. Em vez de apostar em dualismos fáceis, o texto aposta na ambiguidade: as divergências entre Ratzinger e Bergoglio são nuances de uma mesma inquietação moral. A articulação dos diálogos evita qualquer rigidez doutrinária, preferindo a fluidez das falas que hesitam, recuam e se contradizem. O que se revela ali não é a oposição entre o conservador e o reformista, mas a aproximação entre dois homens que aprenderam, à sua maneira, a conviver com o incômodo da dúvida.
É nesse campo de hesitações que as atuações de Jonathan Pryce e Anthony Hopkins operam com precisão cirúrgica. Nada é gratuito na maneira como Hopkins sustenta o silêncio com o olhar ou como Pryce contorna o desconforto com uma humildade não performática. Não há gestos amplos nem discursos inflamados: há escuta, há pausas longas, há cansaço nas palavras ditas. A grandeza dramática se esconde nas frestas, nos tropeços da linguagem corporal e nas confissões que brotam com resistência. A química entre os dois não serve para entreter, mas para desarmar o espectador — aquilo que seria um debate teológico vira, de súbito, uma troca de confissões de almas feridas.
A condução de Meirelles não se acomoda na teatralidade dos ambientes sagrados. Pelo contrário: ela transforma espaços suntuosos em lugares de introspecção e, quando necessário, desloca a narrativa para cenários mais mundanos — ruas de Buenos Aires, cozinhas simples, campos de futebol. Esse trânsito entre o sacro e o cotidiano evita que o filme caia na armadilha do hierático. A câmera não se intimida diante da pompa do Vaticano, mas tampouco a idolatra; ela oscila entre o distanciamento crítico e a intimidade sincera, permitindo que o espectador observe sem endeusar, compreenda sem precisar escolher um lado.
A beleza mais contundente da narrativa reside em seu desinteresse por canonizar ou vilanizar. Em lugar disso, o filme investiga o que acontece quando duas consciências distintas são obrigadas a compartilhar o mesmo legado e a mesma culpa histórica. Não há salvação gloriosa nem condenação definitiva: há reconhecimento mútuo e um esforço silencioso de compreensão. Nesse sentido, “Dois Papas” é menos sobre religião do que sobre humanidade — sobre o que significa falhar publicamente e, ainda assim, continuar tentando ouvir aquilo que permanece obscuro mesmo para os mais devotos.
O filme não busca respostas. Seu mérito é justamente tensionar o espectador com perguntas que não têm solução fácil: como se manter fiel a princípios quando o mundo exige transformação? Como administrar a fé em meio ao desencanto institucional? E, acima de tudo, como encarar o perdão — o alheio e o próprio — quando se ocupa uma posição de poder moral? A produção não sugere fórmulas redentoras, mas sim um convite ao desconforto ético. Nessa escolha, reside sua singularidade.
Sem recorrer a firulas emocionais ou panfletarismos previsíveis, “Dois Papas” estrutura-se como uma meditação encenada sobre o peso das escolhas e a fragilidade de quem as toma. Mais do que revisitar um momento-chave da Igreja, o filme propõe uma imersão no labirinto das consciências. E ali, entre dúvidas, silêncios e gestos quase imperceptíveis, revela-se algo raro: a possibilidade de que o poder também seja uma forma de escuta. Uma escuta que não santifica, mas que transforma — sem alarde — o que parecia irreconciliável.
★★★★★★★★★★