Não há nada de heróico no olhar de Bruce Wayne. Na versão concebida por Matt Reeves, os olhos do protagonista não salvam, não inspiram, tampouco pedem redenção. Eles vigiam. O mundo, nesta Gotham apodrecida, não precisa de salvação, mas de uma espécie de purgação — e é nesse território ambíguo entre punição e justiça que “Batman” se instala. Ao contrário da euforia pirotécnica que costuma ditar o compasso dos filmes de super-herói, a obra opta por desacelerar e submergir em um terreno mais denso: a investigação, o lodo urbano, os códigos morais que colapsam silenciosamente. O que encontramos aqui não é um espetáculo, mas uma autópsia. Não uma missão, mas uma inquietação.
Na pele de um vigilante que ainda não compreendeu os limites da própria fúria, Robert Pattinson assume um Bruce Wayne sem carisma nem máscara social — um homem corroído por uma culpa sem nome e por uma missão cuja urgência ultrapassa o razoável. Seu Batman não brilha à noite; ele se dissolve nela. Com uma fisicalidade opaca e um emocional que prefere o silêncio à reação, o personagem se desenha mais como um investigador paranoico do que como símbolo de esperança. Reeves se afasta das produções típicas do gênero e aproxima seu longa de uma linhagem mais áspera: o noir urbano dos anos 1970, o thriller obsessivo de “Zodíaco”, os jogos de mente de “Seven”. Não se trata de referenciar, mas de herdar um espírito — o da inquietação como motor narrativo.
Essa atmosfera sufocante se concretiza também no vilão escolhido. Paul Dano não interpreta um Charada; ele o reconfigura. Seu antagonista é menos um enigma do que uma ferida aberta, e a violência que provoca não busca caos, mas coerência — ainda que distorcida. Em sua leitura, o vilão se aproxima mais de um radical fanático do que de um gênio excêntrico. As cenas em Arkham não são apenas intensas: são desconfortáveis no nível certo, revelando um abismo ético que não se fecha com socos ou gadgets. O embate aqui é menos físico e mais ideológico. E, talvez por isso, mais perigoso.
Zoe Kravitz, por sua vez, escapa da caricatura da femme fatale para construir uma Selina Kyle que, embora magnética, carrega suas próprias contradições. É uma figura que atua à margem, mas não como mistério — e sim como resposta às ausências masculinas. Ainda que a conexão com Pattinson careça de combustão imediata, há entre os dois uma sinergia tensa, feita mais de desconfiança do que de desejo. Em outra chave, Colin Farrell surge irreconhecível, compondo um Pinguim que ainda não é ameaça, mas já se infiltra como um sintoma da corrupção entranhada no sistema. Não há glamour no submundo retratado — apenas sobrevivência.
Matt Reeves, ao orquestrar tudo isso, demonstra domínio da linguagem do desconforto. O uso de sombras não é artifício visual, mas extensão da psique. A trilha sonora, econômica e pulsante, age como refluxo emocional da cidade — um lugar onde nada é urgente porque tudo já está prestes a ruir. A câmera não persegue a ação: ela espreita. As perseguições são sujas, os combates, rudes. Até o Batmóvel parece menos um carro de elite e mais um instrumento de exorcismo urbano.
Mas essa ousadia narrativa não atravessa incólume as três horas de duração. Há um ponto em que a tensão, que até então funcionava como motor, começa a repetir seu ciclo. O clímax, embora competente, soa como uma concessão — não por falta de impacto, mas por destoar da cadência minuciosamente construída ao longo do filme. Em um universo que até então recusava saídas fáceis, a resolução soa convencional. A grandiosidade do último ato, ao buscar um fechamento épico, enfraquece parte da densidade anterior. Ainda assim, não se trata de um colapso, mas de um recuo — talvez inevitável — diante das amarras de um gênero que exige conclusão.
No miolo dessa Gotham disfuncional, é possível enxergar um retrato daquilo que se tornou o próprio arquétipo do herói contemporâneo: alguém que já não luta contra monstros, mas contra sua própria incapacidade de produzir sentido. Reeves capta isso sem recorrer a panfletos. Seu Bruce não tem grandes arcos de superação, nem frases inspiradoras. É um homem em processo — falho, violento, cauterizado. E talvez seja precisamente por isso que esta versão do Batman ressoe tão fundo: ela não tenta inspirar, tenta sobreviver ao colapso ético que ela mesma denuncia.
O filme não responde — interroga. Não redime — compromete. E, ao fazer isso, realiza algo raro: um blockbuster que arrisca mais do que promete, que investiga mais do que explica e que, mesmo em seus tropeços, permanece inquieto. Como deveria ser qualquer narrativa verdadeiramente interessada em olhar para o abismo — e não apenas para o espelho.
★★★★★★★★★★