Simples, leve e deliciosamente boba: a comédia da Netflix que entende que rir também é cura Divulgação / Netflix

Simples, leve e deliciosamente boba: a comédia da Netflix que entende que rir também é cura

O universo das comédias românticas raramente surpreende em sua estrutura narrativa, mas, por vezes, oferece disfarces curiosos para dilemas humanos persistentes. É sob esse véu leve e aparentemente inofensivo que uma jovem influenciadora digital, treinada em “transformar vidas” com frases de efeito e manuais emocionais, cruza o caminho de uma adolescente perdida entre fórmulas químicas e labirintos sentimentais. A trama que se desenrola a partir desse encontro não desafia convenções dramáticas, mas oferece uma oportunidade para examinar, com olhos mais atentos, os paradoxos da busca por aceitação e os limites do aconselhamento quando vida e teoria colidem.

Azra, personagem central desse enredo, construiu uma carreira precoce como mentora de comportamento, acumulando fãs entre jovens que enxergam em suas palavras uma promessa de lucidez emocional. É assim que ela acaba atraindo Hande, uma estudante mergulhada em incertezas sociais e uma paixão sem reciprocidade. Ao topar ajudá-la, Azra não apenas tenta moldar o exterior da garota para atrair a atenção do rapaz desejado, mas também se vê envolvida em uma série de consequências que extrapolam as promessas simplistas de sua profissão. Afinal, quando o outro se perde tentando se ajustar a padrões de pertencimento, de quem é a culpa? O filme evita responder diretamente, mas semeia a dúvida com delicadeza.

No centro do conflito, desponta a dissonância entre imagem e essência, com Hande tentando forjar uma versão palatável de si mesma, enquanto Azra é confrontada com sua própria rigidez emocional. A chegada de Burak, fotógrafo e novo vizinho da conselheira, inaugura um território que ela não domina: o da vulnerabilidade espontânea. A relação que nasce desse encontro evidencia como até mesmo aqueles que vivem de oferecer caminhos seguros também tropeçam em suas próprias inseguranças. Esse entrelaçamento entre o fracasso da fórmula e o inesperado da emoção confere à narrativa uma camada que merece ser observada com menos desdém do que seu gênero normalmente provoca.

Embora alguns diálogos revelem padrões culturais anacrônicos e observações que podem soar desconfortáveis ao espectador ocidental, é justamente nessa fricção que reside um dos aspectos mais ricos da experiência. A diversidade promovida pelas plataformas de streaming permite que tais choques culturais sejam enfrentados com curiosidade, e não com julgamento. Ao testemunhar o funcionamento de valores distintos, o espectador é provocado a reavaliar seus próprios paradigmas sobre afeto, autoimagem e relações de poder.

Não se trata de um filme que reinventa a roda. Mas a forma como ele retrata o desejo de ser aceito — seja por um grupo social, por um amor idealizado ou por si mesmo — reflete um impulso comum e, muitas vezes, mal compreendido. A ansiedade em torno da validação externa molda comportamentos, reprime espontaneidades e constrói máscaras frágeis. “Conselheira no Amor” questiona, ainda que de maneira singela, o preço dessa performance cotidiana e a violência suave que ela exerce sobre nossa identidade.

No plano das relações entre mulheres, o longa aponta para uma rede de solidariedade que transcende os clichês do gênero. O vínculo entre Azra e Hande, embora nasça de uma lógica quase transacional, evolui para uma aliança que desafia a estrutura hierárquica entre mentora e aprendiz. Ao se responsabilizarem mutuamente por suas quedas e acertos, ambas evidenciam o quanto a empatia e o cuidado recíproco podem ser formas de resistência num mundo ainda estruturado por códigos masculinos de poder.

Sim, há leveza, figurinos atrativos e situações típicas de filmes que se consomem em uma tarde chuvosa. Mas há, também, um olhar possível sobre temas que merecem mais do que um tratamento superficial. Se abordado com o filtro adequado, “Conselheira no Amor” ultrapassa a função de entretenimento rápido e se transforma numa alegoria doce sobre as falhas humanas e os limites do controle. Em tempos onde a aparência ainda dita muitas escolhas, permitir-se não saber — e ainda assim seguir — talvez seja o conselho mais honesto de todos.

Filme: Conselheira no Amor
Diretor: Kivanç Baruönü
Ano: 2022
Gênero: Comédia
Avaliação: 6/10 1 1
★★★★★★★★★★