Épico com atuação de Kate Winslet digna de Oscar está no Prime Video Divulgação / Sky

Épico com atuação de Kate Winslet digna de Oscar está no Prime Video

A travessia de Lee Miller pelas trincheiras da Segunda Guerra desafia não só a lógica de sua época como as estruturas ainda resistentes da narrativa histórica tradicional. Ao ocupar um espaço que, até então, parecia vedado às mulheres — o da documentação direta dos horrores da guerra —, a personagem interpretada por Kate Winslet se revela não como exceção, mas como desvio corajoso de um padrão excludente. A figura da fotógrafa que trocou a elegância da redação da “Vogue” pelo caos do front ganha contornos que escapam às fórmulas consagradas do heroísmo: ela não combate apenas com a câmera, mas também contra os mecanismos que legitimam quem pode ou não contar uma história.

Sob a direção de Ellen Kuras, a narrativa se equilibra entre a densidade documental e a força subjetiva de um testemunho que resiste à própria banalização da imagem. Ao reconstruir as memórias de Lee a partir de um relato dado com relutância a um jovem jornalista (Josh O’Connor), o filme evita o recurso fácil do flashback explicativo e se aprofunda no peso que cada lembrança carrega. Winslet traduz essa dor silenciosa com uma interpretação que recusa o brilho clássico da redenção e aposta numa exaustão tácita, onde cada palavra dita parece ser arrancada à força de quem viu demais.

A inteligência do roteiro, assinado por Liz Hannah, Marion Hume e John Collee, está em recusar o lugar-comum da figura heroica e optar por uma construção mais honesta: a de uma mulher atravessada por contradições, limites e recusas. A montagem costura os horrores dos campos de concentração à resistência privada das mulheres que ficaram à margem dos grandes feitos, mas pagaram caro pela sobrevivência. Andrea Riseborough, Marion Cotillard e Noémie Merlant enriquecem essa pluralidade com atuações que, longe de competir com a protagonista, ampliam o escopo da experiência feminina sob o terror nazista.

Em seus melhores momentos, “Lee” é uma meditação incômoda sobre o peso de ver. A força das imagens captadas por Miller, muitas delas censuradas por parecerem “excessivas”, questiona a fronteira entre o documentário e a compaixão, entre o testemunho e a perpetuação do trauma. Ao recusar o apagamento, ela também aceita o fardo de carregar consigo um tipo de verdade que não se apaga — e que talvez, por isso mesmo, precise ser repetida. O filme entende essa repetição não como redundância, mas como forma de responsabilidade histórica.

Se algumas escolhas visuais parecem contidas demais para a intensidade do tema, o controle estético não reduz a potência do que está em jogo. Ao contrário: o minimalismo formal permite que o conteúdo das imagens ganhe centralidade, sem distrações ou embelezamentos indevidos. Não é um filme que se esconde na dor, mas tampouco a transforma em fetiche. E é nesse ponto que “Lee” se firma como um gesto maduro: não há glória na sobrevivência, apenas a persistência em narrar o que muitos preferem esquecer. Lee Miller, por sua vez, fez disso seu ofício: atravessar a barbárie, voltar com provas e, ainda assim, encontrar maneira de contar sem perder de vista o humano. O filme não a transforma em símbolo; permite que ela permaneça pessoa.

Filme: Lee
Diretor: Ellen Kuras
Ano: 2023
Gênero: Biografia/Drama/Épico/Guerra/História
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★