A Páscoa acabou, mas se você ainda busca alimento para sua fé, esse filme na Netflix é perfeito Mark Cassar / Mandalay Pictures

A Páscoa acabou, mas se você ainda busca alimento para sua fé, esse filme na Netflix é perfeito

Poucos filmes têm a ousadia de abordar o martírio sem ceder à tentação do heroísmo ou do sentimentalismo. “Paulo, Apóstolo de Cristo”, dirigido por Andrew Hyatt, é uma dessas raridades. Ao invés de exaltar o personagem-título como ícone de santidade ou símbolo de vitória espiritual, o longa opta por caminhar por terrenos menos confortáveis: a decadência física, o peso das memórias e a erosão da esperança num ambiente onde a fé, se ainda existe, é uma escolha brutalmente solitária. Seu foco não está na glória da conversão, mas no exílio interno de quem já foi algoz, se tornou crente e agora aguarda a execução numa cela subterrânea, enquanto o mundo lá fora desfaz-se em violência.

O cenário é Roma, sob o regime persecutório de Nero, e o palco principal é a prisão de Mamertino — um espaço apertado, sombrio e silencioso, onde o tempo se acumula em camadas de poeira e resignação. É nesse confinamento que Paulo (James Faulkner) revê sua história por meio dos diálogos com Lucas (Jim Caviezel), o médico e discípulo que, ao visitar o apóstolo, pretende registrar suas palavras em um manuscrito que futuramente comporia o “Livro dos Atos”. Mas o que poderia ter sido apenas uma dramatização biográfica se revela como um embate entre a fé dilacerada e a memória em ruínas. Os diálogos entre os dois não funcionam como mera ponte expositiva: são confrontos éticos, interpelações filosóficas e, sobretudo, testamentos de um tempo em que crer significava colocar a própria vida em risco — e talvez não obter nenhuma resposta em troca.

A estrutura do filme é deliberadamente retraída. Não há pressa em conduzir o espectador, nem interesse em seduzir por meio de truques narrativos. A sobriedade estética, marcada por sombras cerradas, interiores abafados e enquadramentos estáticos, não decorre de uma opção estilística vazia, mas traduz um universo onde tudo que resta é esperar. Há uma proximidade com o noir, não apenas no uso expressivo do chiaroscuro, mas na atmosfera opressiva e na constante presença da morte como figura ausente, mas inevitável. Essa escolha visual, longe de ser meramente decorativa, contribui para a imersão em um tempo onde a esperança é quase um gesto insano.

A composição dos personagens é outro ponto que escapa às convenções do gênero histórico-religioso. Lucas, interpretado por Caviezel com uma contenção que amplifica sua intensidade, não é apenas um escriba zeloso. Ele é o último elo entre um passado que desmorona e um futuro ainda por ser escrito. Olivier Martinez, no papel do prefeito Mauritius, foge da caricatura anticristã e investe em uma ambiguidade que o aproxima da realidade política de qualquer época: a de um homem dividido entre o dever e a dúvida. Mas é em Faulkner que o filme alcança seu centro gravitacional. Seu Paulo não é o homem das epístolas altivas, mas alguém que caminha entre o remorso e a resignação. Nele, há o peso de quem foi perseguidor antes de ser perseguido — um homem ferido que, mesmo entre as ruínas da carne e do espírito, ainda acredita que a palavra, quando escrita com honestidade, pode atravessar os séculos.

As passagens em flashback — especialmente a queda no caminho para Damasco — não servem como recreações plásticas de um passado glorioso, mas como fendas por onde escorrem os fantasmas do antes. A câmera não idealiza; ela observa. E nessa escolha reside a força do filme: em aceitar que a fé não é uma linha reta, mas uma sucessão de desvios, colisões e silêncios. O Paulo que rememora sua trajetória não está seguro de nada, nem mesmo da presença divina. E é nesse ponto que a narrativa toca em algo mais profundo: a fé, quando arrancada das convenções dogmáticas, revela-se menos como certeza e mais como decisão — uma que pode ser mantida mesmo em face do absurdo.

A decisão de Hyatt de evitar a espetacularização é, por si só, um gesto político. Ao abdicar de milagres em tela ou de discursos inflamados, o filme recusa o proselitismo e, em seu lugar, opta por uma abordagem quase ascética. Isso não o torna menos envolvente; pelo contrário, transforma cada silêncio em tensão, cada palavra em gesto de resistência. A trilha sonora, discreta e melancólica, se recusa a guiar a emoção do espectador. A fotografia, pautada por tons ocres e azulados, sugere que a luz, se ainda existe, vem de muito longe — ou talvez seja apenas uma memória da luz.

Em meio ao avanço do autoritarismo e à destruição dos primeiros núcleos cristãos, o filme insinua que a fé verdadeira não é aquela que aguarda milagres, mas aquela que persiste em continuar falando, escrevendo, recordando — mesmo quando ninguém mais está escutando. Lucas escreve, não porque espera convencer, mas porque sabe que, um dia, alguém poderá ler. E nesse gesto silencioso, quase invisível, reside a única possibilidade de continuidade.

O filme não pede identificação com seus personagens. Não exige lágrimas nem piedade. Ele oferece, no lugar disso, uma experiência de contemplação e desconforto, onde a espiritualidade é um campo de batalha interior, e a salvação, se vier, será sempre a posteriori — talvez nem venha. Mas a beleza da narrativa está justamente aí: na recusa em oferecer consolo barato, e na insistência em mostrar que resistir, mesmo sem garantias, ainda é um ato digno.

“Paulo, Apóstolo de Cristo” ergue-se não como um retrato sacralizado de um santo, mas como uma meditação rigorosa sobre o que significa ser humano em tempos de trevas. Um filme que não propõe respostas, mas impõe perguntas — e que, por isso mesmo, permanece reverberando muito depois da última cena.

Filme: Paulo, o Apóstolo de Cristo
Diretor: Andrew Hyatt
Ano: 2018
Gênero: Aventura/Biografia/Drama/História
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★