Nicole Kidman viveu cenas tão intensas que precisou de dias para se recuperar — o filme já chegou ao streaming Divulgação / A24

Nicole Kidman viveu cenas tão intensas que precisou de dias para se recuperar — o filme já chegou ao streaming

Poucos cronistas da alma humana tiveram a audácia de explorar com tal precisão suas zonas mais obscuras quanto Nelson Rodrigues. Dizia-se moralista, mas era, acima de tudo, um cartógrafo dos desejos que a sociedade tenta sufocar com convenções e silêncios. Sua arte não buscava redenção nem acusação, mas a revelação impiedosa das engrenagens ocultas entre culpa, prazer e poder. “Babygirl”, mesmo sem fazer qualquer referência direta ao dramaturgo brasileiro, parece extrair sua pulsação essencial desse território ambíguo, onde perversão e lucidez se confundem — e onde a hipocrisia social, tal qual um véu fino, mal consegue disfarçar o impulso.

Halina Reijn, com seu olhar estrangeiro à tradição rodriguiana, chega a conclusões similares por vias distintas. Ao colocar frente a frente uma executiva em pleno apogeu profissional e um estagiário desafiadoramente alheio a etiquetas hierárquicas, ela não entrega uma denúncia nem um manifesto. Ao contrário, o que se vê é uma coreografia inquieta entre tensão e atração, construída sobre o que não se diz. A ausência de respostas categóricas não significa neutralidade: é uma recusa deliberada em traduzir em preto e branco o que pulsa em tons de cinza. O desconforto é intencional, e é nele que a experiência estética se adensa.

Nicole Kidman, aqui longe da frieza glacial de certos papéis anteriores, mergulha em uma personagem dilacerada por fraturas que não se exibem em público. Romy, apesar da aparência resoluta, esconde rituais de prazer que beiram o ridículo e o desesperado — como as fugas ao banheiro para consumir pornografia às escondidas. Nada, nem o sexo performático com o marido interpretado por Antonio Banderas, parece tocar os nervos expostos que o contato com o desconhecido Samuel reativa. Há, na construção dessa dinâmica, ecos de Lanthimos, mas o que move Reijn não é o absurdo calculado — é o ímpeto primitivo de romper o script da normalidade.

Desde a sequência inaugural, em que Samuel intervém num ataque canino com destemor quase alegórico, a diretora costura metáforas com a habilidade de quem sabe que todo gesto pode ser signo. Harris Dickinson, que há tempos deixou de ser promessa para se firmar como presença inescapável, torna-se aqui o vetor do descontrole — não por sua juventude ou beleza óbvia, mas por aquilo que carrega de indomesticável. Sua recusa em se submeter ao jogo de poder pré-estabelecido é o que desestabiliza Romy, e é também o que a atrai. Reijn entende que o erotismo mais potente nasce dessa fricção: o risco de perder o controle.

É notável como a trilha sonora opera como extensão emocional dos personagens, invadindo a diegese com um timing que escapa ao mero efeito dramático. “Never Tear Us Apart” não apenas embala uma cena de intimidade, mas reconfigura o desejo como algo intrinsecamente irrecuperável. “Father Figure”, por sua vez, ressoa como ironia cruel e confissão involuntária — o poder, afinal, tem seus próprios fetiches. Cristobal Tapia de Veer, ao mesclar hits oitentistas a momentos de tensão, intensifica o efeito de deslocamento emocional que a narrativa exige.

No entanto, há um ponto em que o filme perde fôlego. Ao acumular símbolos e referências — de “Atração Fatal” a “A Substância” —, a obra começa a transitar perigosamente entre a ousadia e a repetição. Não se trata de pastiche gratuito, mas da sensação de que a história, ao tentar escapar dos lugares-comuns, acaba orbitando-os. Ainda assim, há algo de irrecusável na experiência: Reijn sabe que nem toda ruptura precisa ser explícita, que há revoluções silenciosas que se operam no olhar, no gesto, no desconforto do espectador diante do que preferiria não reconhecer.

E é exatamente aí que “Babygirl” se insinua com mais força: quando abandona a pretensão de explicar, e se permite apenas afetar. A arte, nesse caso, não precisa gritar para ferir — basta que sussurre onde dói.

Filme: Babygirl
Diretor: Halina Reijn
Ano: 2024
Gênero: Erótico/Thriller
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★