Há um instante — por vezes tênue, por vezes brutal — em que se rompe a fantasia de controle sobre o que nos cerca. A crença infantil de que é possível consertar o mundo evapora-se quando percebemos que manter em ordem nossos próprios pertences já é uma tarefa hercúlea. A realidade espreita com desdém, e sua mensagem é clara: há coisas que não se ajeitam com listas ou disciplina. O tempo, esse mecanismo silencioso que rege tudo o que vive, é também o grande debochado do universo: ignora vontades, escarnece previsões e desenha trajetórias com mãos alheias às nossas intenções. Num cenário onde a inteligência artificial se torna o fetiche da era moderna, onde se alimenta um pânico disfarçado de fascínio, o cinema encontra campo fértil para narrativas que exploram a substituição do humano por máquinas que nos imitam sem nunca nos alcançar. É essa a espinha dorsal de “The Electric State”, uma incursão dos irmãos Russo por territórios distópicos que não projetam o futuro, mas o denunciam.
O homem contemporâneo não suporta o vazio, então se dedica a preenchê-lo com invenções — e, ao fazê-lo, cria novos buracos. Cada invenção que almeja facilitar a vida termina por impô-la a um novo padrão de exigência, como se cada solução abrisse a porta para mais dilemas. Tornou-se rotina lidar com objetos que antes pareciam pertencer à ficção: dispositivos que estendem nossa visão, alteram a percepção do real, moldam nossos afetos. De tão corriqueiros, já não provocam assombro — mas colonizam o cotidiano como uma segunda pele. Com isso, silenciamos os desejos ancestrais que exigiam menos e nos entregamos à lógica de consumo que forja urgências sem alma. A consequência é um acúmulo de aparatos que prometem conexão e entregam dependência. O homem moderno, enredado em suas próprias engenhocas, já não distingue mais o que deseja do que lhe foi programado desejar.
O roteiro, concebido por Stephen McFeely, Christopher Markus e Simon Stålenhag, é perspicaz ao expor esse labirinto tecnológico sem desumanizar sua tessitura dramática. A presença onipresente das inteligências sintéticas — sintetizada na figura de Ethan Skate, interpretado com ambiguidade hipnótica por Stanley Tucci — não eclipsa o valor das relações humanas, mas realça sua precariedade. A narrativa propõe um embate silencioso entre o gesto real e a simulação, entre o toque quente e a réplica mecânica. O vínculo, para existir, precisa da imperfeição do contato, do erro da palavra falada, da imprevisibilidade do afeto. O que os robôs oferecem é um esboço, uma performance do amor — sem risco, sem corpo, sem verdade.
Nesse ambiente contaminado de luto, memória e desejo, ressoa o reencontro entre Michelle e Christopher. Dois irmãos separados por uma fatalidade e unidos pela memória que insiste em permanecer mesmo quando a lógica já a desautorizou. Millie Bobby Brown e Woody Norman compõem essa dupla com uma entrega emocional que ultrapassa o espectro da ficção e arranha o terreno do lamento coletivo: a perda do outro como metáfora da perda de si. O que essa história embute, com potência discreta, é a resistência do humano diante da artificialidade crescente. Não se trata de nostalgia pelo passado analógico, mas da constatação de que há dimensões da experiência que só se atualizam no olhar recíproco, no silêncio compartilhado, no amor que não cabe em algoritmo algum.
Se há algo que “The Electric State” instiga é a dúvida: estaremos criando máquinas para nos libertar ou para nos substituir? O filme não responde, nem promete consolo. Mas obriga a encarar que há uma diferença gritante entre simular sentimentos e senti-los de fato — e que, apesar do assombro com as maravilhas da técnica, ainda é a fragilidade humana que sustenta as grandes histórias. Aquelas que, mesmo rodeadas por circuitos, seguem pulsando onde a máquina jamais alcançará.
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