Em um instante fugaz — entre a expectativa de uma pauta irrelevante e o clique de uma câmera esquecida — a repórter Lanie Kerrigan é arrancada da bolha de certezas que sustentava sua vida. A previsão não vem de um telejornal, mas da boca de um homem em situação de rua que, em vez de implorar por espaço, invade a narrativa e a torce: “Você vai morrer na próxima quinta-feira”. Esse enunciado abrupto não apenas fere a expectativa da protagonista em “Uma Vida em Sete Dias”, como também reconfigura a dinâmica do filme, que abandona, ao menos provisoriamente, sua fachada de comédia romântica trivial para sondar, com certo pudor, as rachaduras de uma existência fabricada com esmero.
O que poderia ser apenas mais um exemplar de dramaturgia sobre o vazio de vidas excessivamente roteirizadas torna-se, por instantes, um espelho incômodo — ainda que fosco — das concessões que fazemos diariamente para não confrontar a finitude. Mas o filme evita a vertigem. Prefere o amortecimento da crise à exploração da queda. Ao invés de encarar as implicações brutais da sentença de morte anunciada, ele opta por pintá-la com as tintas suaves da transformação superficial: uma mudança de guarda-roupa, um gesto impulsivo, um beijo em horário nobre.
Angelina Jolie percorre esse trajeto com a competência de quem sabe manipular o brilho e a fissura no mesmo olhar. Sua Lanie é feita de poses que desmoronam aos poucos — não por ruptura, mas por desgaste. O que mais chama atenção, no entanto, não é a reviravolta da personagem, mas o modo como essa reviravolta é conduzida: com a delicadeza de quem passa pano num espelho embaçado, sem realmente querer enxergar o que está por trás. A estrutura do roteiro, em vez de tensionar o tempo escasso que a personagem passa a acreditar ter, dilui a urgência em uma sucessão de esquetes emotivas, como se a morte fosse apenas mais um deadline a ser negociado.
O relacionamento com o cameraman Pete — vivido por Edward Burns — tenta ancorar essa travessia numa dimensão afetiva. Ainda que previsível em sua evolução do conflito à ternura, essa relação é um dos poucos respiros de autenticidade no filme. O contraste entre o cinismo treinado de Lanie e a naturalidade de Pete abre um espaço rarefeito onde a narrativa quase ousa ser mais do que fórmula. Mas o roteiro, comprometido em agradar, não sustenta o passo fora da linha. Sempre que se aproxima de uma reflexão mais contundente, recua para o conforto do conhecido — e entrega ao público cenas como a infame sequência da greve sindical, que, longe de provocar, parece deslocada de um musical de gosto duvidoso.
Ainda assim, há uma centelha de humanidade que insiste em se manter acesa. Não está nos diálogos explicativos nem nas resoluções apressadas, mas nas frestas: na embriaguez imprevista, na respiração entre as frases, no momento em que a protagonista percebe que sabe pouco sobre si, embora saiba tudo sobre como parecer bem-sucedida. É nesse hiato entre o que se vive e o que se encena que o filme, mesmo sem querer, ensaia sua pergunta mais valiosa: o que restaria de nós se o verniz se quebrasse?
Curiosamente, a resposta que o filme não tem coragem de elaborar encontra um eco inesperado na geografia onde tudo se desenrola. “Uma Vida em Sete Dias” consegue, sem alarde, algo raro: incorporar Seattle como personagem tácito, mas determinante. A cidade escapa dos estereótipos que costumam viciá-la no cinema. Em vez de pano de fundo genérico ou cenário pós-grunge, ela é retratada com atenção quase documental — um feito que se revela nas ruas menos turísticas, nas escolas de bairro, nos terminais de ônibus e nas placas que o roteiro se preocupa em pronunciar corretamente. É um tipo de fidelidade geográfica que não serve apenas à estética, mas sugere um desejo — ainda que tímido — de ver com mais cuidado aquilo que sempre esteve à margem do foco principal.
Essa sensibilidade, por mais periférica que pareça, aponta para o que o filme poderia ter sido. Um estudo sobre a dificuldade de se desviar dos caminhos pré-fabricados, sobre o embate entre a aparência e a urgência de se viver de verdade. Mas “Uma Vida em Sete Dias” escolhe a leveza calculada. Troca o risco da vertigem pela segurança do arco narrativo que se resolve em pouco mais de 90 minutos e termina com uma escolha de vida “mais autêntica” — porém esteticamente controlada. A personagem muda, mas dentro dos limites do que é palatável. O filme propõe mudança, mas sem abrir mão da ordem.
Há algo quase irônico em um roteiro que trata da morte como motor da vida, mas se esquiva do desconforto que essa ideia naturalmente impõe. A sentença do profeta soa como ruptura, mas é usada como gatilho para uma fábula moral leve, que não se atreve a descascar a existência até o osso. E talvez esse seja o maior problema do filme: ele prefere ser agradável a ser honesto. Opta por anestesiar, quando poderia inquietar. E ainda assim, no rastro das promessas não cumpridas, sobra uma pergunta que se recusa a desaparecer: o que faríamos se soubéssemos exatamente o quanto nos resta?
★★★★★★★★★★