O  Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, chega ao século 21 pleno de sentido e beleza

O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, chega ao século 21 pleno de sentido e beleza

O que dizer de um livro que começa a ser escrito em 1910, tem a primeira parte publicada em 1930, a segunda somente dois anos depois e resta inacabado, por causa da morte repentina do autor? Se você vencer o preconceito e esquecer os comentários maldosos — e ligeiros — sobre ele, vai dizer muita coisa. “O Homem Sem Qualidades” talvez seja o romance mais hermético, mais sui generis, mais filosófico e mais poético jamais publicado, e sobram ironias finas neste curto período. É um livro cheio de intenções, de pretensões, mas, ao mesmo tempo, não quer dizer nada — tomando-se o não querer dizer no sentido de deixar ao leitor compreendê-lo da forma como melhor lhe aprouver.

Ulrich, 32 anos, o protagonista desse Bildungsroman, desse romance ensaístico, ou romance de construção — enquadrar o livro numa categoria só rendeu um caminhão de teses de mestrado e doutorado, muitas delas confusas. Ulrich era um homem que não conseguia se ajustar na sociedade em que vivia. Tentou a carreira militar: desistiu; imaginou que a engenharia lhe poderia trazer alento para uma vida sem sentido e também teve de abdicar desse propósito, por ser a engenharia teórica demais; por fim, é vencido pela matemática, com a qual também não se realiza, por ser este um campo demasiado duro e completamente avesso a subjetividades. Ulrich é um homem sem qualidades num mundo de qualidades sem homens para vivê-las, ou seja, ele estaria no lugar certo, mas é honrado demais para reconhecer-se inútil num mundo em que objetividade, praticidade, utilidade são os fundamentos para se ter uma vida plena. Nosso herói — que é muito mais um anti-herói, com muito orgulho — retira-se da vida por se reconhecer sem importância e sem qualidades. Não consegue tornar-se importante porque a subjetividade perdeu seu lugar no mundo. Tampouco pode tornar-se um homem romanesco, um Dom Quixote, por exemplo, porque falta-lhe a vivência, a relação entre sua personalidade e os fatos.

O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil (Nova Fronteira, 1248 páginas)

Por extensão, seu criador poderia ser tomado por pai de manifestações artísticas de contestação, como a contracultura ou, por que não? o movimento hippie. Robert Musil não conseguiria dar tamanha veracidade e tamanho vulto a seu personagem mais famoso se não lhe emprestasse um pouco que fosse de sua própria personalidade — e, novamente, muito já se falou sobre a semelhança entre autores e os tipos que inventam; muitos escritores chegam a apregoar que toda narrativa é autobiográfica. O romance pode ser lido à luz da fundamentação filosófica, como uma reflexão e interpretação do comportamento do homem junto ao meio em que se encontra, adquirindo respaldo em autores como Sartre, Beauvoir e Nietzsche. Ao mesmo tempo, é uma sátira a esses padrões sociais, levantando o questionamento acerca do quão adequado seria observá-lo à risca, já que ninguém é capaz de conhecer nossas necessidades e nossas mazelas mais que nós mesmos. Deixando-se cristalizar pelos ditames do grupo social em que se insere, o homem nunca poderá tornar-se quem é, como mandou Píndaro, reproduzido à larga por Nietzsche.

Assim sendo, o livro, por conter tantas notas à margem, tantas digressões, tantas especulações a respeito do que diabos é um homem, afinal, deixa a condição de “mero” romance e assume a natureza maior de ensaio. A história se passa em Viena, ao final do império austro-húngaro, pouco antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e é aí que se evidencia seu pendor para a reflexão filosófica no que concerne à natureza humana e o desajuste de Ulrich naquele cenário. Os prussianos preparam sua grande celebração do ano e os austríacos só pensam em fazer uma festa muito mais vistosa; para tanto, institui-se um comitê composto por membros da alta burguesia local, cujo cargo de secretário caberá a Ulrich, que parece se adaptar depressa à nova função. Até que fica sabendo do julgamento de Moosbrugger, condenado por assassinato. Ulrich começa a elucubrar sobre sua condição de homem ordinário, de homem sem qualidades, a quem só resta passar a vida numa realidade insensível a sonhos e dramas pessoais sem deixar-se sucumbir.

O julgamento de Moosbrugger toma corpo na história justamente por, de alguma maneira, estabelecer uma comparação entre o facínora, que igualmente não obedece a padrões, e Ulrich. E pior: parece que apenas ele enxerga que o processo tem muito de farsesco, uma vez que ninguém chega à conclusão sobre se Moosbrugger é de fato um criminoso cruel ou um pobre diabo que não teve a sua sorte, não se submeteu a ser aprisionado numa caixa e enlouquecera de vez. Criminoso consciente ou inconscientemente, lúcido ou insano, Moosbrugger é condenado, enquanto os demais se ocupam das festividades.

“O Homem Sem Qualidades” assume a forma de romance para narrar uma aventura intelectual. Robert Musil acreditava que o romance de formação de um indivíduo é um tipo de romance, mas o romance de formação de uma ideia é o romance em si mesmo, o que deixa evidente que preferia a reflexão sobre a natureza humana em detrimento de divagações sobre o homem personalizado, ou seja, que a alma humana seria dotada da capacidade de elaborar seus próprios conceitos a respeito de qualquer assunto. O homem não tem pouca alma; o homem tem é pouco entendimento sobre sua alma.

Com o livro, Musil se provou um intelectual indispensável, em qualquer tempo e em qualquer contexto, ao desmistificar questões cuja discussão já não se podia mais postergar. Evita-se o pensamento por não se poder compreendê-lo e ao compreender o pensamento do homem de maneira tão perspicaz e ao mesmo tempo tão sensível, Musil estabeleceu um saudável paradoxo. O calvário do escritor é dar forma literária ao pensamento, escapando do discurso filosófico. Discursos filosóficos encerram o homem num padrão específico. Sem querer, Robert Musil tornou-se um dos grandes filósofos de seu tempo, sem deixar de ser um literato de excelência. Um homem de muitas qualidades, portanto.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.