Ensaios da terceira guerra

Ensaios da terceira guerra

Nunca, desde 1963, quando houve a chamada Crise dos Mísseis em Cuba, o mundo esteve tão próximo de uma Terceira Guerra Mundial. Naquela época os soviéticos é que planejavam instalar uma base de lançamentos no país vizinho dos EUA. Claro, John Kennedy não deixou. Agora a Ucrânia, com pretensões ainda de integrar a aliança militar ocidental, virou a Cuba de Vladimir Putin. Não são exagerados os alarmes de Joe Biden: é fato que a Rússia cercou militarmente a Ucrânia com a maior movimentação bélica desde a Segunda Guerra; é fato que a diplomacia está fracassando seguidamente; é fato que o Oriente está se alinhando tanto quanto o Ocidente, haja vista o pronunciamento chinês pró-Rússia; e é fato também que de um lado temos os Estados Unidos e de outro a Rússia — as maiores potências nucleares do mundo.

Atualmente a Rússia é apenas a décima primeira economia global, com um PIB um pouco maior que o brasileiro, U$ 1,4 trilhão, contra U$ 20 trilhões dos EUA (números do FMI). Mas os russos possuem um exército regular superior a um milhão de homens, a depender da fonte maior que o dos EUA. E se estes detêm, de longe, o maior orçamento militar, os russos possuem mais ogivas nucleares: em números redondos seriam 6.800 contra 6.500, de acordo com a Federação de Cientistas Americanos, FAS. Por este motivo uma guerra entre Ocidente e Oriente criaria uma situação bastante perigosa. O jornalista Roberto Godoy, especializado em assuntos de defesa, disse à Globo News que o arsenal atual pode aniquilar o mundo 16 vezes. E classificou de “assustadora” a atual movimentação russa, captada por sismógrafos! Não repercutiu na mídia brasileira um pronunciamento de Vladimir Putin à TV estatal Sputnik, em que o líder russo advertiu sobre o uso de tecnologias de destruição em massa, no caso de um conflito pan-europeu: “Não haverá vencedores”, lembrou.

De positivo, é fato também que a Ucrânia não integra a aliança militar do Ocidente. Por este motivo Washington se limitaria a impor sanções econômicas no caso de uma invasão russa — negada pelo Kremlin, mas efetivada via Donetsk e Luhansk. O problema ucraniano é que não parece ser possível pertencer à Comunidade Econômica Europeia sem integrar seu esquema de segurança. Um acordo imporia o outro. Além deste temor por parte de Putin, iniciou-se a guerra de mentiras, e quando a mentira entra em jogo é porque alguém está disposto a aumentar a confusão. São muito tênues os motivos que levam a uma escalada incontrolável: da mesma forma que atentados forjados parecem ter justificado a invasão da Ucrânia pela Rússia, o apoio ocidental pode resultar no envolvimento militar direto de outros países europeus — e consequentemente arrastar os Estados Unidos para o eventual conflito. País que, aliás, constitui um péssimo exemplo.

O impressionante histórico de intervenções militares dos Estados Unidos em outros países fragiliza sua posição nas negociações diplomáticas em curso. O país invadiu o Vietnã (1955-1975) e, mais recentemente, o Afeganistão (2001-2021) e o Iraque (2003-2011), valendo-se de mentiras escabrosas e em nome da “segurança nacional”: em linhas bastante gerais, esta é a mesma justificativa de Vladimir Putin para ameaçar a Ucrânia. E os casos mencionados nem de longe dimensionam a agressividade norte-americana.

Em “Estados Unidos x América Latina, as Etapas da Dominação” (Mercado Aberto, 1984), Voltaire Schilling, historiador, analisa as intervenções ianques na América Latina, listando pelo menos 20 situações em que efetivaram ameaças de invasão nos países de sua periferia. Tudo começou com a Doutrina Monroe, em 1823, quando um ainda fracote mas ambicioso Estados Unidos estabeleceram unilateralmente seu direito exclusivo de intervir nas nações vizinhas. A partir daí nos tornaram seu “quintal”, muitas vezes com a subserviente anuência das elites do continente. De 1823 para cá surgiram três novas doutrinas – “leis maiores que orientam a política norte-americana por longos períodos históricos”, segundo Shilling —; quais sejam, “A Política de Boa Vizinhança”, de Franklin Roosevelt, a “Doutrina de Segurança Nacional”, de Harry S. Truman, e a “Doutrina Bush”.

A “Doutrina de Segurança Nacional” é particularmente importante do ponto de vista latino, por dois motivos: 1) porque é a base das intervenções norte-americanas em Cuba (1961), Brasil (1964) e Chile (1973), e 2) porque surge no pós-Segunda Guerra com pretensões de conter a expansão global do comunismo. A Rússia já era o grande inimigo da América. Segundo Shilling, no caso cubano houve “intervenção armada indireta”, e no Brasil e no Chile houve “política de desestabilização”. O presidente Lyndon Johnson chegou a enviar sua força naval ao Brasil, caso os golpistas locais reivindicassem o desembarque dos marines. De acordo com Jorge Ferreira (“O Governo Goulart e o Golpe Civil-Militar de 1964”), pelo menos a CIA e o Departamento de Estado atuaram no país para depor João Goulart. Há sérias dúvidas sobre o caráter comunista de Goulart — na verdade um populista bastante indeciso — e suas Reformas de Base. Porém, por causa das analogias, Cuba é mesmo o caso mais emblemático para se analisar a situação ucraniana.

A apenas 145 quilômetros dos EUA, o país caribenho tornou-se comunista em 1959. Fidel Castro derrubou o ditador Fulgencio Batista, preposto dos interesses norte-americanos na ilha, e aliou-se à União Soviética. Era uma situação inaceitável para Washington, como é para Moscou a da Ucrânia juntar-se ao Ocidente, trazendo a OTAN para as suas barbas. Os Estados Unidos também tentaram invadir seu próprio vizinho em abril 1961, alegando imperativos de segurança nacional. Obviamente, não queriam a influência econômica e ideológica soviética nas suas fronteiras. A tensão com Cuba chegou ao limite em 1963, quando os soviéticos quase conseguiram armar a ilha de Fidel com misseis balísticos direcionados contra os EUA, capazes de atingir Boston, Massachusetts. É uma ironia, agora, ver os Estados Unidos acharem que a Ucrânia é “livre e soberana” e tem direito de integrar a OTAN — o que implicaria ceder bases de lançamento apontadas para a Rússia, capazes de destruir Moscou.

Além das sanções econômicas, há três cenários possíveis no caso de a Rússia invadir a ex-república soviética, além das regiões separatistas. Primeiro, os Estados Unidos não enviarem tropas para a Ucrânia: por hora é a posição “oficial” da administração Biden. Segundo, algum imprevisto com aliados pode forçar o governo norte-americano a agir militarmente contra os russos em território ucraniano, anulando o cenário um. É bom lembrar que os EUA também não entrariam na Segunda Guerra, até serem irremediavelmente arrastados a ela pelo Império do Japão. Dependente de imponderáveis como Pearl Harbor, a atual crise evoluiria então para um patamar inédito e poderia desencadear o cenário três: um conflito aberto entre as duas superpotências. Neste caso as chamadas “armas de dissuasão”, nucleares, tornam-se opção de ataque mútuo, com consequências globais. Tecnicamente, portanto, estamos a uma invasão efetiva da Ucrânia pela Rússia e a um envolvimento direto dos Estados Unidos para o conflito descambar para o pior cenário.

Só não teme o que está acontecendo quem ignora os fatos: trata-se este do momento mais delicado entre russos e americanos em cinco décadas. E também para o resto do mundo, que assiste impassível a negociações infrutíferas, ataques verbais sucessivos e conferências preocupantes. Normalmente, o inferno começa com palavras — e com exércitos em marcha.

J.C. Guimarães

Crítico literário.