Você, dentro de casa, com medo de uma criatura invisível ao seu olhar, mas que está ali, ao seu redor, pronto para ameaçar você e a vida das pessoas que você ama. Sair de casa não é uma boa opção, já que você sabe que que o perigo é redobrado porque o ser habita alguns lugares. Assim, o que há para ser feito é sobreviver dentro da aparente segurança de seu lar, até que a ameaça decida ir embora de sua vida… ou não.
Como pesquisador e orientador de pesquisas sobre Literatura Fantástica, uma das minhas funções é refletir sobre como os comportamentos, angústias e ansiedades de cada época tomam formas em monstros específicos na Fantasia, Gótico, Horror e Ficção Científica. Afinal de contas, cabe a Literatura e a outras formas artísticas traduzirem o seu zeitgeist em expressões que ajudem as pessoas a lidarem simbolicamente com a realidade que as cerca. Esse já é certamente o caso de 2020, um ano assombrado pelos efeitos e presença microscópica do novo coronavírus sobre nossas rotinas e comportamentos, levando a um quadro semelhante ao observado na Literatura dentro do que é conhecido como Conto de Fantasma.
O fantasma tem um lugar especial dentro da literatura fantástica, e quando escrevo aqui “lugar especial” não me refiro apenas as casas assombradas popularizadas em obras como “A Assombração da Casa da Colina” (1959), de Shirley Jackson e “O Iluminado” (1977), de Stephen King. De fato, diferente de outros monstros que habitam a imaginação humana desde tempos imemoriais, como o vampiro e o lobisomem, o fantasma se liga a um indivíduo que, em vida, era conhecido por outras pessoas, possuía uma história em algum meio social, seja em família ou sua comunidade. Esse fato, aliado a crença na imortalidade da alma e a memória afetiva dos vivos, não apenas explica a persistência na crença do fantasma desde a Antiguidade até o século 21, mas também explica o fascínio que um bom conto de fantasma tem sobre quem o lê.
As raízes dos contos de fantasmas podem ser traçadas na Antiguidade desde o mais antigo texto literário da humanidade no épico babilônico “Gilgamesh”, cuja datação inicial pertence ao século 18 a.C, passando pelo Canto XI da “Odisseia” (8 a.C.), de Homero e o sexto livro da “Eneida” (1 a.C.), de Virgílio.
Após atravessar a Idade Média como personagem nas chamadas “viagens imaginárias”, comuns entre os séculos 5 ao 15 e representada em obras como “Historia Eclesiastica Gentis Anglorum” (731), do monge anglo-saxão Beda, o fantasma ressurgiria em seu esplendor evanescente no teatro inglês elisabetano na viradas dos séculos 16 para o 17. Em “Hamlet” e “Macbeth”, ambos de William Shakespeare, o fantasma surge como uma advertência da violação da ordem da hierarquia medieval, expondo assassinatos e regentes ilegítimos.
No século seguinte, em pleno Iluminismo, este ser sobrenatural encontraria o seu abrigo literário nas sombras dos poemas ingleses da chamada Escola do Cemitério (Graveyard School) e principalmente em meio a ascensão do romance gótico na Inglaterra com “O Castelo de Otranto” (1764), de Horace Walpole e na Alemanha com “O Aparicionista” (1787-1789), de Friedrich Schiller. Estava preparado o terreno para o surgimento do Conto de Fantasma na segunda metade do século 19.
Símbolo da reflexão do Realismo sobre o conceito do real, arauto do clima decadentista finissecular, metáfora do reprimido em uma época de ascensão dos estudos sobre o inconsciente, ícone da tradição histórica frente ao galopante progresso industrial e agente de denuncia social, o fantasma literário na Inglaterra vitoriana (1837-1901) e eduardiana (1901-1918) se mostrou um versátil personagem a serviço dos interesses de vários escritores e escritoras. Neste processo, a proliferação das narrativas literárias centradas em fantasmas ao longo das décadas de 1840 a 1920 fomentou a constituição deste subgênero próprio, irmão da literatura gótica e de horror que ficou conhecido como Conto de Fantasma, tendo sido celebrado por nomes como Joseph Sheridan Le Fanu, Charles Dickens, Henry James, Charlotte Perkins Gilman e M. R. James, dentre vários outros nomes.
Chama a atenção aqui os paralelos do contexto de ascensão desta expressão do fantástico há quase um século com o nosso mundo em 2020, quando sentimos os efeitos dos espaços privados sobre nosso comportamento e damos vozes aos nossos fantasmas interiores, surgidos do silêncio do isolamento e das nossas memórias e atos passados. Ler um bom conto de fantasma é, assim, uma terapia para nossos tempos atuais.
E se você quer ter o prazer de se envolver nessas histórias, no momento em que escrevo essas linhas, está aberta a campanha para a publicação da melhor coletânea em língua portuguesa sobre o tema, trazendo 26 contos de fantasmas fundamentais que vão desde o primeiro na Roma antiga até o século 20, incluindo também a rica tradição do conto de fantasma na literatura brasileira. Um livro necessário em tempos de ameaças invisíveis cuja proposta você pode conferir aqui.
Alexander Meireles da Silva é doutor em Literatura Comparada pela UFRJ. Desde 2016 é produtor de conteúdo do canal do Youtube Fantasticursos.