Eu devoro a solidão sem sujar as minhas mãos

Eu devoro a solidão sem sujar as minhas mãos

Não confio em gente que cria passarinho em gaiola. Eu conheço essa dor. Tenho tantos sentimentos aprisionados dentro do peito, que nem lhe conto. Eles são tristes e sozinhos, mesmo assim, não sentem vontade nenhuma de cantar. Sou um sujeito sujeito a altos e baixos, como as aves de rapina. Um dia, caça; outro dia, caçador. Queria tanto dar a volta por cima, voar suave pelo céu estrelado de Alto Paraíso. Só que, daí, já não seria mais ave. Quem sabe, se muito, um míssil coreano, um asteroide que cai em solo goiano, um satélite antiquado se desintegrando numa tremenda bola de fogo ao penetrar na estratosfera. Eu queria muito lhe comer com os olhos e lamber com a testa. Tenha dó. Faça festa. É dura a espera para os que têm fome. De que vale uma gaiola de ouro, se o passarinho não canta? O amor — eu já tinha ouvido falar nisso antes — é um fio desencapado.

Não confio em gente que conversa comigo olhando para os lados. A verdade está nos olhos, gracinha. Não insista. Não tenho lado. Não sou filiado, marxista, efeminado ou coxinha. Che foi um guerrilheiro cheio de defeitos, assim como nós. Eu também sofro de bronquite e de sonhos com a justiça social. Sou fã da minha mãe, do meu pai e dos velhos filmes de caubói que incendiavam a TV nas tardes mornas da minha infância. Mantenho uma distância aceitável da hipocrisia: eu vibrava, com indisfarçável idolatria, quando John Wayne alvejava o vilão da história, num duelo justo, na única rua do lugarejo, disparo certeiro sob o sol do meio-dia. Um dia ainda me atiro inteiro em seus braços, baby.

Não confio em gente que janta carne moída e arrota caviar. São pessoas que, de tanto falar, lhes falta o ar; eles espumam pelos cantos da boca, esgotam a minha paciência. Eu gosto do povo humilde, sem ciência, do lavrador com os pés-rachados que almoça no meio da manhã, antes que eu, um citadino-com-mãos-finas-de-veludo, aroma de lavanda, tenha sequer acordado. Confio no roceiro sem modos que devora o rango sentado sobre os calcanhares, com um prato esmaltado equilibrando comida em cima do colo. Eu preferia fazer um voo solo, a ter que caminhar até a morte com o resto da humanidade. Não sou rês para entrar nas casuísticas. Quisera odiar os homens com a mesma intrepidez e falta de classe dos vulcões e dos abalos sísmicos. Mas, meu cuspe é lento e meus tremores são fracos, inócuos, inofensivos.

Pode parecer um paradoxo, um conflito interior da maior magnitude, mas, eu não confio em gente que guarda rancor nos cofres da memória. Não minta pra mim, que meu peito não é de aço. Ele não possui chave nem segredo. Também sofro de injustiças, iniquidade e medo. Será que um dia eu cresço? Na minha idade, já devia demonstrar mais equilíbrio. Eu sou aquele carinha desequilibrado, com os dedos a rasgar a própria boca; um homem ignorante, de talento mediano, que escreve para estancar a sede de justiça que lhe seca os sorrisos. A estiagem anda forte, potranca. Quase não rio, e isso não tem nada de intransitivo, de impessoal, pois, mesmo morando no centro-norte do país, onde o índice pluviométrico é pífio, eu continuo a chover de tanta melancolia. Você diz que eu deveria conjugar corretamente o verbo, ao invés de julgar as pessoas? Ora, não me faça estudar gramática a essa altura da vida. Eu sou tão defectivo e anômalo quanto um punhado de verbos da natureza. Quer dizer, com certeza, eu sou um homem horrendo.

Não confio em gente que não dá a mínima para o que as outras pessoas estão sofrendo. A frieza, a falta de brio os fazem selvagens de arrombar introitos. E por falar em alienação e barbárie, saiba que eu sou o mais novo escândalo do noticiário das 8h. Eu devoro a solidão sem sujar as mãos, e há pouca coisa que os editoriais possam fazer para amenizar a carnificina. Como você já deve ter notado, desde o primeiro parágrafo, lá em cima, no começo, eu sou tão terrível quanto o céu estrelado de Alto Paraíso. Como diria o poeta, eu sou um poço de sensibilidade. Portanto, feche os olhos, tape o nariz, abra um sorriso e salte aqui dentro, docinho.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.