O escritor italiano sugere que aqueles que “buscam” os segredos dos escritores tendem a produzir uma literatura entediante e diz que tradutores alteram o sentido dos livros
Primo Levi (1919-1987) é autor de obras-primas que são literatura de testemunho — “É Isto um Homem?” (Rocco, 175 páginas, tradução de Luigi Del Re) e “A Trégua” (Companhia das Letras, 359 páginas, tradução de Marco Lucchesi) — e literatura pura mesmo. O que o tornou famoso foram as obras que têm a ver com sua passagem e saída de Auschwitz, um dos mais brutais campos de extermínio nazista. O autor italiano escreveu também poesia — durante certo tempo, invertendo a máxima do filósofo alemão Theodor Adorno, disse que, “depois de Auschwitz, não se pode mais fazer poesia, a não ser sobre Auschwitz” —, e ensaios. “O Ofício Alheio” (Editora Unesp, 289 páginas, tradução de Silvia Massimini Felix) contém alguns de seus textos críticos. O livro traz um artigo de Italo Calvino no qual assinala que “a capacidade de observação é o grande dote de Primo Levi”. Em “O punho de Renzo”, nota que, “no romance ‘Os Noivos’ [de Alessandro Manzoni], os gestos dos personagens estão todos errados ou são impossíveis, como gestos de um mau ator”.
Um dos textos mais deliciosos, no qual fala do ofício do escritor, é “A um jovem leitor”. “O senhor pensa que narrar é uma profissão, enquanto eu acho o contrário”, afirma, respondendo a uma carta, possivelmente imaginária. “Na Itália”, frisa Primo Levi, “quem vive de escrever não tem garantias. Em consequência, os narradores puros, aqueles que vivem apenas da sua criatividade, são pouquíssimos: no máximo dez. Os outros escrevem nas horas vagas, dedicando o resto do tempo à publicidade, ao jornalismo, à editoria, ao cinema, ao ensino. Por isso lhe recomendo que tenha seu emprego em alta conta”. Não é muito diferente do Brasil, no qual Paulo Coelho e mais uns dois ou três conseguem sobreviver apenas de escrever.
No Brasil, enquanto assistem séries em série e partilham churrascadas ou flanam pelas ruas das cidades, escritores e intelectuais dizem que não têm tempo para escrever. Primo Levi sugere ao leitor que quer ou julga que quer ser escritor: “Se o senhor tiver realmente sangue de escritor, encontrará de qualquer jeito tempo para escrever”. Jane Austen, não citada por Primo Levi, escrevia numa escrivaninha desconfortável, não tinha escritório nem ar condicionado e legou a nós alguns romances excepcionais.
Segredos da profissão
O leitor cobra de Primo Levi os “segredos da profissão” (ou da “não profissão”) de escritor. “Eles existem, não posso negar, mas felizmente não têm validade geral; digo ‘felizmente’ porque, se tivessem, todos os escritores escreveriam do mesmo modo, gerando assim tal volume de tédio que tornaria inútil qualquer tentativa de fazê-la passar por leopardiana e de acender os interruptores automáticos dos leitores mais indulgentes.” As oficinais literárias, patropis e de outros países, correm o risco de se tornarem indústrias de escritores — todos, ou quase, escrevendo de maneira muito parecida, como se existisse uma mágica única. As fórmulas podem até funcionar, com o “operário” do texto escrevendo até certinho, mas, com imaginação disfuncional, dado o primado mais da técnica, os textos quase sempre são burocráticos. Há algum gramático que escreva tão bem — de maneira imaginativa — quanto Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector? Possivelmente, não. Ainda não o “inventaram”.
Mesmo discordando das fórmulas, Primo Levi diz que “o primeiro segredo é o descanso na gaveta. “Entre a primeira elaboração e a definitiva, devem se passar alguns dias; por algumas razões que ignoro, por um certo tempo o olho de quem escreve é pouco sensível ao texto recente. É necessário que a tinta esteja bem seca; primeiro, os defeitos fogem: repetição, lacunas lógicas, impropriedade, desafinamento.” O escritor, embora não use o termo, sugere que é preciso ter paciência e aceitar que nem sempre a obra-prima sai de um jato. “Uma ótima alternativa à gaveta pode ser constituída por um leitor-cobaia, dotado de bom senso e bom gosto, não muito indulgente.”
Em seguida à maturação, “chega a hora de aparar as arestas. Quase sempre nos damos conta de que pecamos pelo excesso, que o texto é redundante, repetitivo, prolixo”. O primeiro texto é, em regra, “gordo” e é preciso emagrecê-lo, o que torna a “escrita mais ágil”, frisa Primo Levi. O objetivo dos cortes e da condensação é dotar o texto do “máximo de informação com o mínimo de enrolação”. Para obter uma literatura mais enxuta, menos palavrosa e explicativa, é preciso escolher os sinônimos adequados, “que quase nunca são equivalentes entre si. Há sempre um que é mais ‘justo’ que os outros. (…) Acho importante manter viva a consciência do significado de cada vocábulo”. Alcançada a fluência necessária, depurados os excessos, espera-se que se tenha escapado dos lugares-comuns. Trata-se de uma citação indireta de Flaubert.
“Depois de noventa anos de psicanálise, e de tentativas bem ou malsucedidas de decantar diretamente o inconsciente na página, tenho uma necessidade aguda de clareza e racionalidade”, assinala Primo Levi. “Escrever é desnudar-se: desnuda-se até mesmo o escritor mais limpo. Se o senhor não gosta de se desnudar, contente-se com seu trabalho atual. Estava esquecendo de lhe dizer que, para escrever, é necessário ter alguma coisa para escrever”. Noutras palavras, literatura, ao menos a de qualidade, não é missão para diletantes. O ensaio deve ser lido junto com outro texto, “Por que se escreve?”, que não será comentado.
Escrever um romance
Durante décadas, Primo Levi escreveu “autobiografia disfarçada ou evidente”. Depois, decidiu “experimentar escrever um romance” (“Se Não Agora, Quando?”, Companhia das Letras, 309 páginas, tradução de Nilson Moulin). “O que se experimenta quando se escreve coisas inventivas? Escrever a respeito de coisas vistas é mais fácil que inventar, e menos feliz. (…) Escrever um romance é um superescrever: você não toca mais a terra, voa com todas as emoções, os medos e os entusiasmos dos pioneiros num biplano de lona, fios e madeira; ou melhor, num balão do qual cortaram as amarras. A primeira sensação é aquela de uma liberdade sem limites, quase licenciosa.”
A construção das personagens é um tema mais complexo. “Em termos abstratos, você tem sobre eles um poder absoluto. (…) Mas apenas em termos abstratos: pois está ligado a eles mais do que parece. (…) Personagens de um livro são criaturas estranhas. (…) Sua única substância são as palavras, rabiscos negros sobre folhas de papel brancas.” A liberdade do autor “é apenas aparente”, ressalva Primo Levi. “Ele, o não existente, está ali, existe, pesa, empurra sua mão: quer e não quer, soturno e teimoso. Se você insiste, ele se entristece. Afasta-se, para de colaborar com você, de sugerir suas pautas; perde corpo, torna-se plano, fino, branco. É papel e retorna ao papel”. O escritor afirma que “é impossível… cunhar um personagem sem transplantar para dentro dele, além do seu humor de autor, fragmentos de pessoas que você encontrou e de outros personagens”. A personagem é e não é biográfica, porque, ao surgir a partir de compósitos, de caracteres de pessoas reais diferentes, deixa de ser puramente real. “Acho uma grande impossibilidade criar um personagem do nada. Fatalmente o autor só transfere a ele uma parte de si; mas o resto, o não eu, nunca é totalmente inventado. (…) O personagem muito coerente é previsível, ou seja, aborrecido; não tem reações, é programado, não tem vontades. Deve ser incoerente como todos nós somos, ter variações de humor, deslumbrar, perder-se, crescer de página em página, ou declinar, ou se queimar: se permanecer igual a si mesmo não será o simulacro de uma criatura, mas o simulacro de uma estátua, ou seja, um duplo simulacro.”
Tradução
A tradução, mesmo se (e quando) traidora (todas são), é absolutamente necessária. É uma ponte que estabelece relações entre culturas e, portanto, é uma agente civilizatória múltipla. Aristóteles, Homero, Horácio, Ovídio, Púchkin, Goethe e Tolstói chegaram (e chegam) até nós, que não sabemos grego, latim, alemão e russo, em versões, às vezes esmeradas, outras desleixadas. No ensaio “Traduzir e ser traduzido”, um dos melhores do livro, Primo Levi anota que “quem exercita o ofício de tradutor ou intérprete deveria ser enaltecido, pois se esforça para limitar os danos da maldição de Babel. Mas isso nem sempre acontece, pois traduzir é difícil e o resultado do trabalho do tradutor muitas vezes é de qualidade inferior”. Ele afirma que os tradutores são mal pagos. No Brasil, nos últimos 40 ou 50 anos, as traduções melhoraram muito, inclusive de idiomas menos popularizados. As traduções indiretas são cada vez mais raras e alcançou-se um alto grau de profissionalismo, mesmo quando os tradutores tenham outras atividades (muitos dos melhores são professores universitários).
“Traduzir é um empreendimento difícil porque as barreiras entre as linguagens são maiores do que geralmente se pensa. Os dicionários, em especial os de bolso, constituem uma perigosa fonte de ilusão; o mesmo pode ser dito daqueles tradutores eletrônicos multilíngues. (…) Quase nunca é verdadeira a equivalência que uns e outros garantem entre a palavra da língua de partida e a correspondente da língua de chegada. As áreas dos respectivos significados podem ser sobrepostas em parte, mas é raro que coincidam, mesmo entre línguas estruturalmente vizinhas e historicamente aparentadas entre si”, disserta Primo Levi. Costumo traduzir textos do espanhol e não uso Google Tradutor e Tradukka, exceto para checar uma ou outra palavra. Porém, para frases, não são úteis. Meu método? Faço uma tradução geral, dado meu relativo conhecimento da língua, e depois, anotadas as dúvidas, consulto dicionários, para tornar o texto mais preciso e fluente na Língua Portuguesa (mesmo textos jornalísticos não podem ser traduzidos, por vezes, ao pé da letra — imagine prosa e poesia). Nos últimos tempos, tenho usado basicamente um dicionário integralmente em espanhol, sem tradução para o português, com o objetivo de verificar a utilização da palavra na língua original. Os falsos cognatos — ou falsos amigos — são sempre um perigo.
Vale transcrever um longo trecho da escrita de Primo Levi: “A invidia [inveja] do italiano tem um significado mais preciso que a envie do francês, que indica também o desejo, e a invidia do latim, que compreende também o ódio, a aversão, como atesta o adjetivo italiano inviso. É provável que na sua origem essa família de palavras aludisse unicamente ao vede male [ver mal], seja no sentido de trazer dano no olhar, ou seja, de lançar o mau olhado, seja no sentido de experimentar desprazer ao olhar para uma pessoa que nos é odiosa, de quem se diz (e não só em italiano) que ‘não podemos nem vê-la’; mas depois, em cada língua, o termo deslizou em direções diversas”.
Os “falsos amigos” são armadilhas, postula Primo Levi. “Alguns termos de uma língua podem aparecer em outra adquirindo um significado não mais afim ou contíguo, como no caso mencionado antes, mas totalmente diverso. Em alemão, Stipendium é bolsa de estudos, Statist é a comparsa teatral, Kantine é o espaço, Kapelle é a orquestra, Konkurs é falha, Konzept é a cópia malfeita e Konfetti são as serpentinas. Os macarons franceses não são macarrões, mas biscoitos. Em inglês, apertive, sensible, delusion, ejaculation, apology, compass não significam de fato aquilo que para um italiano parecem à primeira vista: purgante, razoável, ilusão, exclamação, desculpas, bússola. Second mate [segundo oficial] é nosso terceiro oficial. Engineer não é o engenheiro no nosso sentido, mas alguém que se ocupa de motores (engines).”
Embora não soubesse romeno, Primo Levi diz que, “se for verdade que friputura é o assado, suflet é a alma, dezmierdà quer dizer acariciar e indispensabili são as cuecas”, o campo se torna minado para os tradutores. “Cada um dos termos elencados é uma emboscada para o tradutor desatento ou inexperiente, e é divertido pensar que a armadilha é ativa nos dois sentidos: um alemão corre o risco de trocar nosso homem de Estado por um comparsa.”
Frases idiomáticas são outro “drummond” no meio do caminho do tradutor. Estão “presentes em todas as línguas, mas” são “específicas de cada uma delas”. Primo Levi conta de um romance no qual se diz que “um filantropo tem um esqueleto no armário, o que é possível, embora incomum”. Não há como escapar das frases idiomáticas. “Cada um de nós, seja falando, seja escrevendo, formula essas frases sem sequer se dar conta. Não há nada mais natural, para um italiano, que dizer siamo a posto [estamos bem], fare fiasco [contar um fracasso], farsi vivo [dar notícias], prendere un granchio [cometer um erro grosseiro], non posso vederlo e centenas de outras expressões similares: contudo, elas não têm sentido para o estrangeiro, e nem todas são explicadas pelos dicionários bilíngues.”
Para o tradutor, outro problema são os termos locais. “Todo italiano sabe o que é o Juventus”, aposta Primo Levi. Se for o time de futebol de Turim, não seria “a Juventus”? Para traduzir do italiano, sustenta o escritor, é necessária “uma longa imersão no nosso cotidiano”. Se isto não for feito, “nenhum dicionário ajudará”. “O que irá ajudá-lo [o tradutor], se ele a possuir, é a sensibilidade linguística, que é a arma mais potente de quem traduz, mas que não se ensina nas escolas; essa sensibilidade lhe permite mergulhar na personalidade do autor do texto traduzido, de identificar-se com ele, e o avisa quando alguma coisa não se enquadra no texto, não cai bem, está fora do tom, não tem um sentido concreto, parece supérfluo ou desalinhado.”
“Transferir de uma língua para outra a força expressiva do texto” é uma tarefa árdua, pontua Primo Levi. “É uma obra sobre-humana. (…) Tendo em vista que um texto nasce de uma profunda interação entre o talento criativo do autor e a língua em que ele se exprime, cada tradução carrega consigo uma perda inevitável. Essa defasagem é variável, grande ou pequena segundo a habilidade do tradutor da natureza do texto original.” Traduzir poesia, por exemplo, é uma tarefa hercúlea. Trocar “e chego aonde nada mais reluz” como “chego a um lugar escuro” é sempre um perigo.
Mas Primo Levi não avalia a tradução como descartável e louva (se é que louva) levemente seus méritos. “Além de ser obra de cortesia e de paz, traduzir pode oferecer gratificações singulares: o tradutor é o único que lê verdadeiramente um texto, lê em profundidade, em todas as suas dobras, pesando e apreciando cada palavra e cada imagem, ou talvez lhes descobrindo os vazios e os enganos. Quando não consegue encontrar, ou mesmo inventar, a solução de um nó, sente-se sicut deus sem por isso ter a mesma carga de responsabilidade que repousa sobre as costas do autor: nesse sentido, as alegrias e os esforços do ato tradutório estão para as do escrever criativo como aquelas dos avós estão para as dos pais.” É provável que o crítico literário, até mais do que o tradutor, seja aquele que lê verdadeiramente o texto…
No fim do texto, Primo Levi, cético em relação ao trabalho dos tradutores, ou crítico da baixa qualidade de algumas traduções, sinaliza que “ser traduzido não é um trabalho nem cotidiano nem de férias, ou melhor, não é absolutamente um trabalho, é uma semipassividade similar àquela do paciente na mesa de cirurgia ou no divã do psicanalista, rica de emoções violentas e contrastantes. O autor que se depara com uma página sua traduzida numa língua que conhece se sente, respectiva ou simultaneamente, lisonjeado, traído, homenageado, radiografado, castrado, pilhado, estuprado, enfeitado, assassinado. É raro que permaneça indiferente às escolhas do tradutor: a ele enviaria, de bom grado, um de cada vez ou todos ao mesmo tempo, seu coração devidamente embalado, um cheque, uma coroa de louros ou os chefões da Máfia”.
A experiência de Primo Levi teria sido tão ruim com tradutores de seus livros? (Ao menos no Brasil seus livros têm sido muito bem traduzidos por Luigi Del Re, Nilson Moulin e Marco Lucchesi.) Tudo indica que sim. Fica-se com a impressão de que está falando mal dos tradutores em geral, e não só dos piores. O mais provável é que esteja comentando, de modo irônico (e, quiçá, ranzinza), que as traduções, mesmo quando qualitativas, são sempre traidoras e que traduzir é uma missão praticamente impossível, ainda, claro, que necessária. Como pouquíssimos podem viver sem elas — inclusive Primo Levi (que dominava italiano, alemão [traduziu Kafka] e inglês, mas não todas as línguas) —, são sempre muito bem-vindas.
As histórias avaliadas como mais ricas por Italo Calvino são “Sinais sobre a pedra”, “Estável/instável”, “Ler a vida” e “O punho de Renzo”, assim como os textos sobre animais.
Euler de França Belém é editor-chefe do Jornal Opção.
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