Obra-prima impecável do cinema europeu indicada a 157 prêmios e vencedora de 2 Oscars, no Prime Video Divulgação / A24

Obra-prima impecável do cinema europeu indicada a 157 prêmios e vencedora de 2 Oscars, no Prime Video

Após assistir ao impactante “Zona de Interesse”, é difícil se desvencilhar da carga perturbadora que o filme traz, ao abordar o absurdo do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. O relato gira em torno de Rudolf Franz Ferdinand Höss (1901-1947), um dos muitos nomes que se tornaram sinônimos da crueldade perpetrada pelo regime de Adolf Hitler. Höss, no entanto, personifica com especial intensidade o que Hannah Arendt definiu como “a banalidade do mal” — uma expressão que, apesar de amplamente utilizada, ainda revela nuances pouco percebidas sobre a natureza do horror institucionalizado.

O tenente-coronel Höss operava com uma frieza e precisão que o permitiam morar a poucos metros de Auschwitz II-Birkenau, local onde supervisionava o campo de extermínio. A proximidade física de sua residência ao epicentro do genocídio destaca sua indiferença macabra, simbolizando a desumanização total que marcou o Holocausto. Höss executava seu papel com um distanciamento tão brutal que preferia a tranquilidade de sua casa ao lado do horror cotidiano do campo, onde a “Solução Final” — o extermínio sistemático dos judeus — era implementada de forma metódica.

O filme, dirigido por Jonathan Glazer, utiliza o romance homônimo de Martin Amis como base para sua narrativa visual. A adaptação capta elementos essenciais da obra, oferecendo ao público uma experiência estética única, que coloca a audiência em contato com a mente perturbadora dos protagonistas. A proximidade física e emocional entre a vida doméstica de Höss e a brutalidade do campo se mescla, e a fronteira entre o comum e o monstruoso se dissolve. Os sons abafados dos gemidos e gritos dos prisioneiros se infiltram pela casa da família, criando uma atmosfera sufocante que culmina nos berros das vítimas do Zyklon B — o gás mortal que selava o destino de milhares.

É natural que se questione a relevância de revisitar uma história já amplamente discutida. Não seria um mero oportunismo explorar novamente o passado sombrio do nazismo? No entanto, “Zona de Interesse” responde essa inquietação logo em seus primeiros minutos, mostrando uma família aparentemente comum, desfrutando de momentos de lazer. Ao examinar essa normalidade ilusória, o filme revela que o mal não se manifesta apenas em gestos grandiosos de crueldade, mas também na indiferença rotineira daqueles que, cegos por suas ambições e desejos, foram seduzidos pela ideologia nazista.

Um dos aspectos mais marcantes do filme é sua estética limpa e precisa, conduzida pela fotografia de Lukasz Zal. A luz natural domina as cenas, criando um contraste quase desconcertante com a temática sombria. O personagem de Höss é frequentemente destacado em meio a esse ambiente, como uma figura que observa e controla tudo ao seu redor com uma calma perturbadora. Em uma das cenas mais simbólicas, uma nuvem de fumaça preta — resultado dos corpos sendo cremados — se ergue ao longe, mas a família permanece alheia, como se aquilo fizesse parte de um cenário comum.

A caracterização dos personagens, especialmente através dos figurinos, também desempenha um papel fundamental no retrato dessa dissonância. Höss aparece em um terno branco impecável, enquanto sua esposa, Hedwig, veste-se de rosa, cores que contrastam fortemente com o horror invisível que permeia o ambiente. Essa escolha visual enfatiza a desconexão entre a vida que levam e o genocídio que se desenrola ao lado. As atuações de Christian Friedel e Sandra Hüller são precisas e inquietantes, destacando a indiferença do casal frente à tragédia que se desenrola a poucos metros de sua casa.

A narrativa cuidadosamente construída por Glazer provoca no espectador uma sensação crescente de desconforto. O filme sugere que, por trás da máscara de civilidade e rotina, reside uma monstruosidade que não se restringe a figuras históricas como Höss. A edição de Paul Watts nos transporta ao final para o presente, levando-nos ao Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, onde se encontram os vestígios dos prisioneiros — seus sapatos, malas e outros pertences — preservados como testemunhos silenciosos do horror que ali ocorreu. O filme nos lembra que, embora Auschwitz tenha sido libertado há 80 anos, os ecos de suas atrocidades ainda ressoam em nossa sociedade.

“Zona de Interesse” não é apenas um filme sobre o Holocausto; é um lembrete poderoso da persistência do mal, da indiferença e da crueldade em seus disfarces modernos. A obra, ao confrontar o público com o contraste entre a beleza estética e a brutalidade moral, revela que, embora possamos estar distantes dos campos de concentração, os algozes que se alimentam de escombros ideológicos ainda estão entre nós.


Filme: Zona de Interesse 
Direção: Jonathan Glazer 
Ano: 2023 
Gêneros: Drama/Suspense  
Nota: 10