Baseado no niilismo de Nietzsche, suspense intrigante na Netflix vai te fazer ter calafrios até o último milésimo de segundo Divulgação / Vertical Entertainment

Baseado no niilismo de Nietzsche, suspense intrigante na Netflix vai te fazer ter calafrios até o último milésimo de segundo

A instituição do casamento, historicamente uma das mais contraditórias e intrigantes, continua a ser objeto de fascínio e inveja, apesar de ser muitas vezes considerada uma estrutura desgastada. O casamento reflete tanto o lado racional quanto o apaixonado do ser humano em sua tentativa de deixar uma marca no mundo, especialmente com a chegada dos filhos. No entanto, a chegada dos herdeiros pode complicar ainda mais o quadro já incerto das possibilidades de felicidade conjugal. Não há como prever, com certeza, o destino de um casal, e a inclusão dos filhos parece apenas aumentar a complexidade. A perspectiva mordaz de Machado de Assis (1839-1908) capta essa realidade com precisão. Sua observação, de que o amor é obra divina, mas o casamento é uma invenção diabólica, destaca a confusão entre esses dois conceitos, um sentimento quase universal em sua essência e a formalidade legal que a sociedade construiu ao seu redor. Na obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), um dos ápices da literatura machadiana, o autor deixa claro seu ceticismo em relação ao casamento e à descendência. A famosa frase “Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” encapsula a visão pessimista e profunda que Machado mantinha sobre a perpetuação da existência humana.

O filme “Herança”, dirigido por Vaughn Stein, ecoa, de certa maneira, as complexidades e as reflexões provocadas pela obra de Machado de Assis. A trama, assim como os romances do autor, explora as tensões entre amor, poder e autopreservação. Stein, ao examinar o casamento e a descendência à luz dessa tradição literária, oferece ao espectador uma narrativa cheia de surpresas, que o próprio Machado não acharia estranhas. O filme conduz a uma reflexão sobre os sacrifícios pessoais que muitas vezes se fazem em nome de uma imagem pública imaculada — uma imagem que tenta mascarar a verdade interna e as fraquezas ocultas. O roteiro de Matthew Kennedy se destaca por sua habilidade em manipular os clichês que muitas vezes permeiam narrativas desse tipo, apenas para, no momento certo, subvertê-los e entregar uma virada de trama que justifica o desenvolvimento de toda a história até então. É nesse ponto que o filme atinge um novo nível de intensidade, deixando clara sua intenção de ir além do previsível.

Lily Collins, por sua vez, dá vida a um novo arquétipo da mulher contemporânea no cinema. Conhecida pelo papel principal na série “Emily em Paris”, Collins surpreende ao entregar uma performance marcante, desafiando as expectativas em torno de sua aparência delicada e comportamento refinado. Em “Herança”, a atriz começa a explorar com mais profundidade o amadurecimento de sua atuação, um processo que ganha força e culmina em outro filme significativo, “Sorte de Quem?”, de 2022, dirigido por seu marido, Charlie McDowell. O casamento, mais uma vez, aparece como um tema subjacente, ligando o desenvolvimento de sua personagem à vida pessoal da atriz de maneira sutil, mas significativa.

Na trama de “Herança”, Lauren Elizabeth Monroe, interpretada por Collins, enfrenta o peso emocional da perda de seu pai, Archer, um homem poderoso e dominador. Ao lidar com o luto, Lauren é forçada a confrontar os segredos que o patriarca escondeu durante toda a vida, revelados de forma gradual e perturbadora. A leitura do testamento, onde Lauren recebe uma quantia relativamente modesta em comparação com seu irmão William, aprofunda a tensão entre os dois herdeiros. A decisão de Archer de deixar a maior parte de sua fortuna para o filho caçula parece ser uma punição pela escolha de Lauren de seguir uma carreira de promotora pública em Nova York, lutando contra indivíduos como o próprio pai.

O verdadeiro mistério, contudo, surge quando Lauren descobre uma chave deixada pelo pai, que a leva a uma revelação devastadora sobre a verdadeira natureza de Archer e sobre a própria vida. O vilão Morgan Warner, interpretado por Simon Pegg, desempenha um papel central na desconstrução da imagem que Lauren tinha de seu pai, e, em última análise, dela mesma. À medida que a trama avança, Stein guia o espectador por uma montanha-russa emocional, levando Lauren a um confronto interno com seus próprios demônios. Essa transformação culmina em uma libertação final, onde a personagem abandona de vez o passado e aceita a realidade nua e crua de sua existência.

“Herança” revela-se, assim, não apenas como um thriller psicológico, mas também como uma exploração profunda dos laços familiares, da ambição e da luta interna por autenticidade em um mundo repleto de máscaras e expectativas irreais. A trama, repleta de reviravoltas e nuances, reflete a complexidade das relações humanas, algo que Machado de Assis teria certamente apreciado em sua análise minuciosa da alma humana.


Filme: Herança
Direção: Vaughn Stein
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 9/10